segunda-feira, 2 de julho de 2012

(2012/533) "Intersubjetividade" entre leitor e texto? "Diálogo" com os autores e os personagens do texto?


1. Corrigindo trabalho de final de semestre. Bate-me à mão a folha de um aluno. Você bate o olho e sabe que não foi ele que escreveu - ou escreveu, mas copiou de terceiros. Você vai ao Google e encontra a "fonte" (foi plágio?, a despeito de cinco semestres, o aluno não aprendeu a utilizar fontes?)...

2. Ossos do ofício...

3. [Não é que vivamos dias ruins - trabalhos do passado pré-Internet deviam estar carregados de plágio de livros - mas os corretores tinham poucas condições de o flagrar, senão aquela sensação de que aquele texto estava bem escrito demais para ser do aluno. Hoje, o Oráculo revela os pecados de (quase) todos].

4. Li, então, o texto "plagiado". Chama-se Leitura e Interpretação Bíblia. O texto mesmo não traz indicação de autoria, mas o site da FTL Brasil, onde está hospedado, indica. É Daniel Dantas.

5. Acabei lendo o texto. Não vou comentá-lo, mas gostaria de problematizar duas declarações - dentre as muitas que me causaram desconforto.

6. Primeira: "por fim, quando chegamos à leitura racional somos capazes de aplicar à nossa vida o sentido e as propostas do texto lido. A leitura racional é o combustível da meditação bíblica. É a capacidade de dialogar com o autor, os personagens, descobrir o sentido da mensagem e transformar a vida com base no texto".

7. Não vou nem comentar o final do parágrafo, carregado que está da política cristã. Interessa-me a afirmação de que a "leitura racional (...) é a capacidade de dialogar com o autor, os personagens". Como assim?

8. Como o leitor pode dialogar com o autor e com os personagens? Autor e personagens são coisas completamente distintas - sem nenhuma possibilidade de serem postos em conjuntos equivalentes. O autor é um ser humano, histórico, real, da mesma espécie e natureza que o leitor, vivo ou morto, não importa, e que se expressou por meio do texto, segundo sua intenção e seu estilo. Com ele, em tese, é possível dialogar.

9. Mas os personagens são, todos, "mentiras" com pernas. São ilusões. Não existem. Não têm vida própria, existência própria. O que eles "dizem" no texto, é ainda o autor quem diz. Ah, sim, posso tomá-los para mim, como se faz com o Jesus dos Evangelhos, e fazê-lo dizer coisas que sou eu que digo, não ele, mas, se a isso chamo de diálogo, bem, conviria mudar o termo, ou, pelo menos não aplicá-lo igualmente ao autor. Salvo se o que o texto chama de "diálogo" é na verdade o "uso", a "manipulação", de cá para lá, de tudo aquilo: do texto, do autor, dos personagens, fazendo-os dizer o que eu quero que digam, como Foucault disse fazer com Nietzsche...

10. Segundo desconforto: "dessa forma, procuramos deixar claro que a interação entre texto e leitor ocorre fundada em uma construção de mundo e do compartilhamento de convenções (...). Esse mundo compartilhado constitui-se em espaço para intersubjetividade plena entre leitor e texto, manifesta, como disse antes, na forma de uma espécie de compromisso cúmplice". Como assim "intersubjetividade"?

11. Como posso falar de "intersubjetividade" entre um leitor e um texto? O texto é um objeto - não é um sujeito. Se eu desejo tomá-lo não como "coisa", mas como "discurso", devo, imediatamente, tomar uma decisão - discurso de quem? E, nesse caso, terei de decidir-me entre o discurso do autor, o meu próprio discurso ou o discurso potencial que alguém poderia manejar a partir do texto. Mas o texto mesmo, tomado como coisa, não é discurso algum - é potência e polissemia em repouso...

12. Só há intersubjetividade entre sujeitos. Textos não são sujeitos. Nenhum personagem do texto é sujeito. Sujeito, só autor e leitor(es) [potenciais e reais]. Logo, a afirmação de que há intersubjetividade entre leitor e texto ou não compreende isso, ou contorna isso. Será algum problema de ordem técnica ou será uma declaração teológica sub-reptícia - quem fala no texto é o "Espírito Santo"? Afinal, trata-se de um artigo da FTL Brasil...



OSVALDO LUIZ RIBEIRO

2 comentários:

Daniel Dantas Lemos disse...

Levei três anos para encontrar esse post. Permita-me responder seus dois questionamentos.
1. Em primeiro lugar, de onde falo (estudos da linguagem e linguística aplicada), o autor não é uma pessoa de carne e osso: é uma função de linguagem do texto. Dito de outra forma: falo de um sujeito-autor que se manifesta no texto, expondo, nesse enunciado, sua ideologia, seu lugar de fala, sua intenção comunicativa.
2. Como decorrência dessa questão anterior, toda uma linha de pesquisa em leitura e análise do discurso compreende que o texto não é um objeto. Nossa interação com o texto é uma interação intersubjetiva.
Sugiro a leitura de Bakhtin sobre essa questão. É dele, por exemplo, que eu derivo a noção de que nas ciências humanas qualquer análise parte da intersubjetividade: a leitura é uma atividade intersubjetiva já que, aqui, nosso "objeto" é também sujeito.
Sobre a questão da autoria, a linguística tem muita coisa a dizer. Mas o próprio Bakhtin, como também Foucault, falam a respeito.
Abraços

Peroratio disse...

Daniel, fique à vontade para seguir essa linha de pensamento. Eu não a sigo. Lamento. Por exemplo, não sei se respondo a você ou ao seu PC, já que quem fala no discurso não é um sujeito de carne e osso...

Eu entendo esses jogos criados pelas autoridades. Mas eu jogo o jogo que me agrada jogar, e esse jogo aí de que quem fala no papel é o papel, nem mesmo os teóricos que inventaram o levam a sério, porque, quando contrariado o papel, sentem-se aviltadíssimos!

No mundo real, isso não existe: só na carteira do aluno...

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