1. Por razões que o Universo guarda em relicário inviolável, nasci hétero. Uma vez que a questão homossexual é ainda extremamente dolorosa e mal-resolvida, não deixo de sentir-me "aliviado" com minha condição erótica. Um sujeito criado como fui, com uma história como a que tive e tenho, tão desajeitado socialmente, fora, ainda por cima, homossexual, teria uma vida terrivelmente triste: e não o digo pela condição homossexual em si, mas pela forma como essa condição é tratada entre crentes e não-crentes. Eu penso que, fosse o caso, não estaria descartada uma hipótese de suicídio. Conheço-me. Não suportaria a exclusão social escarninha, a maldade do amor cristão, que afaga e arranha, o vilipêndio cotidiano, a vexação pública, a espetaculização do objeto humano...
2. Por outro lado, eu penso muito sobre a questão erótica em si. Outro dia, eu pensava no beijo. O que há de "natural" em duas bocas se enfiarem mutuamente uma na outra, aquela esfregação úmida e incontrolavelmente excitante? Em termos "naturais", a boca é para comer e "falar". O beijo não está na "planilha" do engenheiro. Um dia, alguém descobriu que, além de comer e falar, podia usar a boca para outras coisas - tão agradáveis quanto comer e falar... e, que coisa curiosa, não?, depois de descoberta a coisa, o corpo passou a pedi-la insistente e sofregamente... Que ele me beije com os beijos da boca dele, diz a mulher que abre o Cântico dos Cânticos...
3. O beijo é - também! - hétero. De modo que será difícil uma campanha moralista e pseudo-teológica contra o beijo: "Absurdo!, o PT pretende tornar o beijo bíblico, citando Cântico dos Cânticos!", dirá o pastor midiático e youtubiático... Mas, cá entre nós, não é preciso que o PT torne o beijo uma coisa bíblica, porque o é, seja o de face, com que se trai o Cristo, seja o de língua, com que se recolhem sumos carnais na boca alheia - na forma poético-metafórica de leite e mel (Ct 4,11).
4. Há outras coisas que poderia escrever aqui, bastante héteras, mas conterei a verve poética e erótica - mas pensem os amigos quantas coisas a mão faz, não é verdade? As mãos são como labradores em êxtase de alegria a fucinhar por todos os cantos do corpo amado - e, ora, ora, ora: o que haverá de "natural" nisso? Não se trata, tudo isso, de invenção - de descoberta! - dos amores de todos os tempos?, aulas de geografia, escondidas dos pais... E, concordemos, essas coisas, uma vez descobertas, inventadas, quando ensinadas, aprendem-se rápido - e jamais se esquecem...
5. Sob certo sentido, não se pode tratar por "natural" muita prática erótica heterossexual - quantos jogos à luz de velas!... Todavia, assim como, em última análise, o pensamento é natural, o amor, o sentimento, é natural, porque tudo isso, invisível e vago, imaterial e metafísico, é fruto de desenvolvimentos orgânicos, igualmente tudo quanto é erótico é natural, porque, não fora o suporte natural das sensações, dos sentidos, da sensualidade dos poros, do toque, da visão, do cheiro - ah, os cheiros! -, dos gostos, o erótico não constituiria essa dimensão atávica da vida.
6. É. No fundo, é tudo natural, porque é tudo coisa que vamos descobrindo, inventando, redescobrindo, re-inventando. Deveríamos aplicar aos outros a mesma condescendência que aplicamos a nós mesmos. E, se é o caso de sermos vitorianos conosco, não é por conta de uma castração pessoal que haveremos de castrar todo mundo.
OSVALDO LUIZ RIBEIRO
Um comentário:
Coisa mais linda!!! Muita, muita poesia!!! Tivesse eu a capacidade daria uma outra forma... Faria um plágio com sua permissão.
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