quinta-feira, 1 de janeiro de 2009

(2009/001) Saramago e Gaza


1. Sou um leitor de Saramago - a obra de que mais gostei (chorei no final) é Memorial do Convento. O Evangelho Segundo Jesus Cristo é incontornável. A Jangada de Pedra, excepcional. Todos os Nomes, muito interessante e divertido. História do Cerco de Lisboa espera o final da leitura. Na estante, aguardam O Ano da Morte de Ricardo Reis, A Caverna, Levantado do Chão e Objecto Quase. Gosto, muito, de Saramago.

2. Todavia, não posso concordar com a leitura muito extraordinariamente simplista que ele fez dos recentes ataques militares do Estado de Israel à Faixa de Gaza, segundo se pode ler no site do Azenha: "Saramago denuncia Israel". Transcrevo:

2.1 "GAZA - Por José Saramago.

2.2 A sigla ONU, toda a gente o sabe, significa Organização das Nações Unidas, isto é, à luz da realidade, nada ou muito pouco. Que o digam os palestinos de Gaza a quem se lhes estão esgotando os alimentos, ou que se esgotaram já, porque assim o impôs o bloqueio israelita, decidido, pelos vistos, a condenar à fome as 750 mil pessoas ali registadas como refugiados. Nem pão têm já, a farinha acabou, e o azeite, as lentilhas e o açúcar vão pelo mesmo caminho.

2.3 Desde o dia 9 de Dezembro os camiões da agência das Nações Unidas, carregados de alimentos, aguardam que o exército israelita lhes permita a entrada na faixa de Gaza, uma autorização uma vez mais negada ou que será retardada até ao último desespero e à última exasperação dos palestinos famintos. Nações Unidas? Unidas? Contando com a cumplicidade ou a cobardia internacional, Israel ri-se de recomendações, decisões e protestos, faz o que entende, quando o entende e como o entende.

2.4 Vai ao ponto de impedir a entrada de livros e instrumentos musicais como se se tratasse de produtos que iriam pôr em risco a segurança de Israel. Se o ridículo matasse não restaria de pé um único político ou um único soldado israelita, esses especialistas em crueldade, esses doutorados em desprezo que olham o mundo do alto da insolência que é a base da sua educação. Compreendemos melhor o deus bíblico quando conhecemos os seus seguidores. Jeová, ou Javé, ou como se lhe chame, é um deus rancoroso e feroz que os israelitas mantêm permanentemente actualizado. (Reproduzido de : http://www.iela.ufsc.br/?page=noticia&id=744)".


3. Penso que o pronunciamento de Saramago é de extrema simploriedade, pelo fato de que o conflito não se deve, unicamente, ao Estadeo de Israel. As raízes de tal conflito ligam-se ao final do século XIX, à criação do Estado de Israel, pela ONU, em 1948, e, desde então, à recalcitrante insistência de países árabes recusarem a aceitar a existência do Estado judeu. Inúmeros conflitos ocorreram desde então, todos, até onde estou inteirado, iniciados pelo "lado 'palestino'". Contudo, o depoimento de Saramago deixa a impressão de que Israel é um "demônio" sanguinário, divertindo-se em oprimir o "pobre povo palestino".

4. Que nenhum leitor apressado interprete minha reação como uma "defesa" dos ataques. Ainda que não numa confortável e aprazível ilha, estou distante demais do conflito para tomar partido e, de qualquer forma, a única coisa que posso fazer é lamentar, profundamente, a morte de crianças e civis - lamentar pela guerra é de praxe, mas pouco eficiente: ela, como os pobres a que Jesus se referiu no Evangelho, continuará a existir até que o último homem desapareça da face da terra, malgrado todas as utopias. Lamento a guerra, de modo geral, lamento, essencialmente, as atrocidades da guerra, suas conseqüências diretas e indiretas, mormente aquelas contra mulheres e crianças - mas, Saramago, pôr toda a culpa, todo o peso da culpa, sobre Israel, é, no mínimo, falta de bom senso, se não já uma atitude de partido. Pior ainda quando transforma o caso numa atualização da "fé" bíblico-judaica.

5. Ora, se vamos pôr "Yahweh" na fogueira, que vá "Allah", junto - e, no entanto, você apenas taca pedra num dos deuses - nada inocente, é verdade, pelo que conhecemos dele, mas, cá entre nós, que deus o é?

6. Penso que seu pronunciamento deveria ter sido mais "maduro". Poderia ter feito como Lula, que criticou, e foi no ponto - falta vontade política, de todos os lados, inbclusive do lado árabe, para o estabelecimento da "paz" ali, porque, no meio da história toda, a população, de ambos os lados, é levada pelas ondas... Sim, que se criticasse Israel, mas sem transformar o discurso numa condenação unilateral do povo, do Estado judeu. Não é uma tarefa fácil fazer a paz com o povo palestino, porque, cá entre nós, alguns dentre eles jamais aceitarão a paz. Provavelmente há fundamentalistas de ambos os lados. Ontem mesmo se estapeavam, aqui no Brasil, manifestantes árabes que, enquanto protestavam contra Israel, não perderam a chance de se estapearem mutuamente... Por outro lado, há, nos dois campos, homens e mulheres de boa-vontade.

7. Há homens de partido nessa guerra, nos dois lados - e a desgraça é justamente essa: o partido. E, Saramago, a julgar por sua "denúncia", você escolheu um lado. Não me parece ser dessa forma que a solução pacífica virá - porque, sabemos, o lado que você escolheu é também caracterizado pela decisão existencial de varrer do mapa o Estado de Israel.

8. Recomendaria um texto mais equilibrado: Benny Morris, A lógica (e a sinuca) de Israel, publicada no New York Times e disponível no site do Nassif. E terminaria registrando meu apreço tanto pelo povo judeu, que muito admiro, bem como pelo povo árabe, pelo qual nutro, igualmente, respeito e admiração - malgrado os processos modernos de fundamentalização político-religiosa de alguns partidos, em absoluto representativos da boa tradição árabe - pelo contrário! Meu desejo é que consigam criar um modo de conviverem pacificamente. Porque não há "demônios" ali, nem um povo nem o outro o é, conquanto suas ações podem tornar a paz, a cada dia, um sonho cada vez mais distante.


OSVALDO LUIZ RIBEIRO

4 comentários:

Gustavo Marques disse...

Muito profundo seus pensamentos.

abraços.

Peroratio disse...

Obrigado, Gustavo.
Um abraço,
Osvaldo.

Felipe Fanuel disse...

Caro Professor Osvaldo,

Já que você gosta do Saramago, apesar da compreensível presente crítica, lembrei que em 29 de novembro do ano passado, publiquei um post que continha o seguinte texto.

Saramago ontem no Teatro Folha
(Por Felipe Fanuel)

Eram 13h quando consegui sair da Universidade Metodista correndo em direção à estação de metrô Parque Dom Pedro, em São Paulo. Após dois dias de aulas intensas sobre Religião, Teologia e Cultura, tudo o que eu mais queria era chegar antes das 15h ao Shopping Higienópolis, onde ouviria José Saramago. A minha pesada mochila cheia de roupas sujas, continha além dos livros de Zygmunt Bauman, Robert Schreiter e Kathryn Tanner, Ensaio sobre a cegueira e O Evangelho segundo Jesus Cristo. Transcrevo abaixo alguns dos trechos principais que captei da fala saramagoana, que combina o melhor da perspicácia, da inteligência e, claro, do sarcasmo.

“O melhor quando não se tem nada a dizer é calar.”

“A história da humanidade é um desastre contínuo.”

“O instinto serve melhor aos animais do que a razão serve ao homem.”

“Ensaio sobre a cegueira foi escrito para dizer que estamos todos cegos... Eu não queria ver a cara dos meus personagens [quando procurado por Fernando Meirelles para produzir um filme a partir deste romance].”

“Sou aquilo que se poderia chamar de um comunista hormonal... Ser comunista é um estado de espírito... O Marx nunca teve tanta razão quanto agora.”

“Se o português quer ganhar influência no mundo, tem de adotar uma grafia única.”

“Entre Portugal e Brasil só há duas coisas: interesses comuns e trabalhos comuns.”

“O leitor importa depois, não enquanto se escreve.”

“Não quero ofender ninguém... Deus simplesmente não existe.”

“A Bíblia foi escrita ao longo de 2000 anos e não é um livro que se possa deixar nas mãos de um inocente. Só tem maus conselhos, assassinatos, incestos.”

“Alguém aqui sabe dizer o que é o narrador? O narrador é aquele que narra e aquele que narra é o autor.”

“Não me convém saber certas coisas.”

“O problema é que eu não sei de nada, mas tenho essa sensação contínua de que deveria saber de tudo.”

Eis o link para quem quiser assistir ao vídeo da sabatina: http://mais.uol.com.br/view/1xu2xa5tnz3h/sabatina-da-folha-de-s-paulo-com-jose-saramago-04023772E4C13326?types=A

Peroratio disse...

Saramago é sempre Saramago - ainda o admiro muito, para além da admiração que tenho pela média dos escritores. Poucos são aqueles a quem dedico especial carinho: ele é um deles.

Contudo... Quisera eu poder dizer que, sem ofender a ninguém, "Deus não existe". É Barth ao contrário. Para mim, dá na mesma. Um teísta pode ser muito bom, e pode ser um demônio cruel - ah, sem dúvida! Um ateísta pode ser muito bom, mas pode, igualmente, ser um demônio cruel. 1 x 1. Cara e coroa. Vice-e-versa.

Prefiro a fala de Nietzsche: "não nos deixemos extraviar; os grandes espíritos são cépticos". Tornei-me um cético em formação, o que não quer dizer que me considere um grande esírito, apenas que não posso nem dizer "sim" nem dizer "não". Sigo a trilha, então, de Morin, e considero que, para além "desse" sim e "desse" não, o que existe, disso se pode ter certeza, é a "idéia" Deus, eficientíssima, um/a íncubo/súcubo das energias humanas, real, realíssima. Duvidas? Pergunte de Huss a Serveto, por exemplo.

Não se trata, mais, para mim, de "teoria" - mas de sangue. O que é relativamente bom, porque não me encanta nem um ateísmo-saramagoano, nem um teísmo-barthiano. Self deception, ambos.

Mas seus excertos sobre Saramago são bons. Pena que perdi a visita do Nobel.

Um abraço,

Osvaldo.

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