sexta-feira, 2 de janeiro de 2009

(2009/002) Marx "rejeitou" Feuerbach?


1. Há uns meses, quase um ano, talvez, um amigo próximo retrucou, diante de uma citação minha daquele que considero um dos principais marcos teológico-filosóficos do século XIX - aliás, de todos os tempos! -, que Feuerbach mostrou-se "ultrapassado" tão cedo quanto, já, a época de Karl Marx. A "recusa" de meu amigo em acatar Feuerbach como argumento, dava-se, então, por meio do recurso à crítica que Marx "já teria feito" a A Essência do Cristianismo. Interessante - logo depois, Jimmy me contava que eminente teólogo "progressista" brasileiro afirmara, durante um almoço, um dos cujos três comensais era Jimmy, logo, ouvira pessoalmente a declaração, que o século XIX estava equivocado quanto à religião... Não: não é coincidência que ambos, meu amigo e o teólogo famoso, sejam "teólogos"...

2. Vamos à crítica de Marx. Ela se encontra registrada em onze teses, as famosas "Teses sobre Feuerbach". Cito a quarta tese:

2.1 "Feuerbach parte do fato da auto-alienação religiosa, do desdobramento do mundo em um mundo religioso e um mundo mundano. Seu trabalho consiste em reconduzir o mundo religioso a seu fundamento mundano. Mas que o fundamento mundano se desprenda dele próprio e se fixe em um reino autônomo nas nuvens só pode se explicar pela autodilaceração e pela autocontradição desse fundamento mundano. Ele próprio deve então nele mesmo tanto ser compreendido em sua contradição quanto revolucionado praticamente (...)" (Georges Labica, As 'Teses sobre Feuerbach' de Karl Marx. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1990, p. 32-33).

3. Muito bem - eis aí a crítica de Marx à tese de Feuerbach. Ele a nega? Absolutamente! O que ele faz é, acatando-a inteiramente, sem nenhuma ressalva, criticar Feuerbach por ter ele parado no meio do caminho - Feuerbach descreve o fenômeno: a totalidade do que está no mundo "religioso", o mundo dos deuses, tudo isso constitui uma projeção antropológica, uma duplicação "criativa"´- uma hipóstase. Teologia é Antropologia. Nada, absolutamente nada dessa tese Marx recusa. Pelo contrário!

4. Contudo, Marx não quer mais, apenas, "descrever", "compreender" - que é o que Feuerbach fez e propos. Marx não quer apenas saber que o "mundo mundano" está dilacerado e projetado, alienadamente, como "mundo celeste" (conquanto essa informação, para Marx, seja o ponto de partida!) - o que Marx quer é "transformar" esse mundo mundano, de tal modo que a hipósstase (o "mundo religioso") se dissolva, e a projeção perca sentido e necessidade: "ele próprio deve (...) ser (...) revolucionado politicamente" (loc. cit.), porque "os filósofos (entre els, Feuerbach!) apenas (o que não é uma negação, mas uma "privação") interpretaram (Feuerbach "descreve" o mundo religioso, interpretando-o como projeção do "mundo mundano") o mundo de forma diferente, o que importa é mudá-lo" (Idem, Tese 11, . 35).

5. Ora, ora, ora - meu amigo foi deveras afoito em descartar Feuerbach (terá lido Marx?, ou, lido, tê-lo-á entendido?). Depressa tão demais que corre o risco de ter posto tudo a perder. De fato! Somem-se os fatores: a) o importante teólogo brasileiro a declarar falso e equivocado o século XIX (quanto à tese que ali se desenhou sobre a religião); b) Peter Berger, no excelente O Dossel Sagrado, a anunciar o "retorno" do religioso - com toda a força!; c) meu amigo reservando o fundo da prateleira para Feuerbach, peça do "museu dos equívocos" (a rigor, do "museu do terror dos constrangimentos"). Onde isso vai dar?

6. Ora, vai dar na completa sublimação da tese incontornável de Feuerbach - ele, sim, a pedra no sapato. A diferença fundamental entre Feuerbach e os demais críticos da religião daquele período particularmente crítico é que Feuerbach descreve o processo, sem procurar, como primeiro objetivo, "explicar" o fenômeno. Já Marx e Freud, e, a seu modo, Nietzsche, partem, todos, dessa tese fundamental - a teologia, toda, não passa de imaginação humana, mas partem para explicar por que a coisa é assim. Se a imaginação deu-se por uma alienção "materialista" das condições de vida (Marx), se por uma neurose infantil tornada fixa, logo, patológica, na fase adulta (Freud), se pela "esperteza" sacerdotal (Nietzsche) - isso é o que se deve investigar. O que me parece fundamental, ponto fixo, "dado" duro e inamovível é apenas aquilo que Feuerbach pôs: o céu é a terra, Deus, o homem, a Teologia, a Antropologia (Psicologia...). Entretanto, por que isso é assim?, por que isso aconteceu?, por que isso acontece? - talvez nem ainda a soma daquelas três "hipóteses" dê cabo da tarefa de explicar...

7. O que me parece estar acontecendo, lentamente, quase que sub-repticiamente, é o "olvidamento" de Feuerbach. As "explicações" para a projeção/imaginação do mundo religioso são tantas que se pode "relativizar" sua razão de ser, relegando-as ao esquecimento metodológico, domingo após domingo - faço-me entender justamente aqui (pus o itálico para ajudar...)? Feuerbach, contudo, permanece de pé, olhando-nos. Sua tese é única: diante dela só se pode dizer "sim" ou "não" - e eis aí a questão. Se o teólogo diz "sim", o que faz, depois? Como ser sacerdote, depois? Como pregar, depois? Depois de Feuerbach, só Nietzsche e Rogers (onde se cuidar que a pessoa aí na frente é "incompleta", "heterônoma", "não-si", aí, então, poder-se-á encaminhar "aconselhamentos" - ao homem e à mulher sós e autônomos, como?). Daí que tentar contornar a questão, evitar o desafio, o constrangimento, relegando Feuerbach ao reino das impropriedades me parece ser a saída mais "reveladora"...

8. O que cada um vai fazer "depois de Feuerbach" é questão que cabe a cada um - conquanto algumas decisões arrastem consigo centenas de pessoas... O que fica posto é esse dado concreto, essa tese feuerbachiana, de que, para fora de mim e para dentro de mim, eu encontro, sempre, eu mesmo - ainda que esse "eu" se me depare desenhado como "Outro", e, ainda pior, como marionete ou boneco de ventríloquo, seja outro a animá-l"O"...


OSVALDO LUIZ RIBEIRO

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