terça-feira, 30 de novembro de 2010

(2010/603) Ser, Linguagem, Tradição - Eterno Retorno

1. Losurdo demonstra como Nietzsche tinha ciência - ele e grande parte da "direita" européia do século XIX - que a história do mundo, nos últimos dois mil e quinhentos anos, sim, desde a Grécia e até hoje, foi e é a história da luta entre senhores e servos, entre dominadores e dominados, entre nobres e plebeus, entre ricos e pobres. Na contramão, os discursos da "esquerda" desse mesmo XIX - e não apenas os de Marx, mas os de muitos outros mais diretamente engajados nas revoluções da França, por exemplo - argumentam tão evangélica e biblicamente que fazem a tese da Teologia da Libertação constituir um evento "novo" alguma coisa muito provavelmente equivocada, já que os discursos dessa "esquerda" são, todos, em defesa da "opção" evangélica pelos pobres.

2. Na leitura de hoje, Losurdo afirma como "a doutrina do eterno retorno configura-se, então, como a contravingança das classes dominantes, que agora zombam das esperanças e das ilusões das classes subalternas" (Domenico Losurdo, Nietzsche, o rebelde aristocrata, p. 478). A Gaia Ciência, da década de 80 do XIX, é onde Nietzsche começa a defender a tese do eterno retorno. Ele passava a alegar que a História apresentava até uma série local de mudanças, mas que se repetiam infinitamente, de modo que o idêntico sempre retorna ao seu ponto pré-definido.

3. Estamos, aí, diante de uma das últimas tentativas de Nietzsche de abalar a revolução - aniquilar a tese da história linear, inaugurada pelas teologias do fim do mundo, empregadas por judeus e cristãos contra a poderosa Roma dos césares. A vitória de Roma sobre os pobres e oprimidos era aparente. A História caminhava para a vitória dos justos - e Roma receberia a sua compensação pelo sofrimento imposto aos homens. É dessa retórica de esperança que se nutrem os revolucionários do século XVIII e XIX, dirá Nietzsche, fazendo-se escorar nessa confiança e doutrina. Nietzsche, portanto, precisa aniquilar a tese da linearidade da História, para, com ela, aniquilar a esperança dos revolucionários, e com ela, a ação revolucionária propriamente dita. É nesse contexto que se aplica a citação com que abri essa postagem - o eterno retorno é a contravingança dos poderosos contra os desempoderados, assim como o Cristianismo histórico-escatológico, linear, fora a vingança dos desempoderados contra os poderosos.

4. Aí jaz, com todas as cores, a razão de minha absoluta repulsa a toda teoria que, de um lado, feche a saída para a esperança, seja isso em que roupagem se apresente, e, de outro lado, que suprima a consideração pela ação eficiente do sujeito. Não é por outra razão que me alio radicalmente às teses hermenêuticas de Schleiermacher e de Dilthey, bem como me alio inteiramente à tese do primeiro Heidegger, a da condição imanente do "ser" como "evento" aqui e agora, à moda heraclitoiana.

5. No mesmo impulso, sou levado à repulsa em relação às teorias de sobredeterminação da Linguagem (uma nova deusa, dessacralizada), do segundo Heidegger, da tese estruturalista dos franceses do pós-guerra (calvinismo dessacralizado) e, no limite, a tese do pan-tradicionalismo de Gadamer, isso se posso considerar que Gadamer fale, o tempo todo, da Tradição forte, e não da tradição fraca, mas, ainda assim, custaria a retirar minhas barbas do molho. Essas teorias, na prática, produzem o mesmo efeito da teoria do eterno retorno - elas dizem: não adianta, nada muda, nada de fato muda, nada que se faça muda coisa alguma, porque é a Linguagem a decidir todas as coisas, é a Tradição, a pôr cada qual onde está, e a prendê-lo aí, é a Estrutura, a brincar com os homens, é o eterno retorno de todas as coisas para o lugar definido para todas as coisas.

6. Não. Nego-me a aceitar tais teses, venham de quem venha, disfarçadas que sejam, ao ponto de insuspeitáveis "liberais" se deixarem comover por sua aparente "utilidade" - revolucionários a contemplar a Tradição? - e, pior!, a nossa Tradição? Ao fim e ao cabo, não são úteis - não à liberdade, porque elas são debilitantes das pulsões revolucionárias, como de resto foi todo o século XX. Pouca, muito pouca coisa de verdadeiramente revolucionária vingou nesse século, século em que a cultura de massa, a TV, o cinema, a música, a arte, fizeram muito bem seu papel de "pão e circo"., século cujo esforço outro não foi que não soterrar o XIX - a erasio memoriae da revolução. Proclamou-se, inclusive, o fim da história! E esse fim é igualmente sobreposto à Roma invicta pelo filósofo aristocrático - quando se quer que a história acabe, saiba que aí há uma vontade de manter o status quo, aí subjaz o cinismo de manter as coisas tais quais elas estão.

7. Todavia, como um labrador insaciável, eu farejo no ar o sentido paralisante dessas filosofias. Recuso-as. Direito meu. Não me dirão que a Linguagem escreve essas linhas, porque é contra qualquer deus útil que desembainho essa espada. Não me dirão que é a Tradição quem escreve essas linhas, porque posso muito bem escolher de que lado estou nessa briga de dois mil anos - e não estou do lado de Roma. Não me dirão que é uma Estrutura a escrever essas linhas, porque essas linhas carcomem os vergalhões que a sustentam. Muito menos dirão que o eterno retorno bate à porta da minha casa, porque a porta de minha casa só se abre ao sol da esperança, e não se curva ao reacionarismo das classes dominantes.

8. Prefiro Heráclito e a novidade aberta. Prefiro a condição histórica humana, aberta - sim, amanhã posso estar sob a bota dos poderosos, mas pode ser que não! Não há destino - há riscos - e os correrei, porque isso é viver.

9. Eu lia a Bíblia, aliás, a leio, para defender-me - ali estão tantas artimanhas do poder, dos sacerdotes, dos reis, dos poderosos, dos ricos - eles escreveram 95% dessa biblioteca! -, que, observando-as, aprendo a contorná-las, e a proteger minha casa de seus sortilégios. Igualmente, aprendo a identificar no Cristianismo as mesmas estratégias de apropriação, expropriação, cooptação e maldade - e contorno-as. Vou tornando-me protegido, dia a dia, do poder desmesurado da canalha político-religiosa. Por isso leio a Bíblia. Aliarei também mais essa razão para continuar a ler meu até aqui filósofo predileto - a sua deslavada transparência aristocrática, desnuda, não-dissimulada, não evergonhada, revela-me inequivocamente as mesmas retóricas alhures disfarçadas de filosofia e teologia. Próximo de Nieztsche, estarei mais preprado para me defender daqueles que, tendo na alma o mesmo diabo aristocrático, disfarçam-se. Esses, sim, são perigosos, porque, "mesmo quando não é formulada de modo explícito, a doutrina do eterno retorno surge como aspiração na cultura antirrevolucionária" (Losurdo, op. cit., p. 480).


OSVALDO LUIZ RIBEIRO

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