terça-feira, 9 de novembro de 2010

(2010/565) Um caminho poético para a Teologia?


1. Primeiro ponto: os místicos medievais não fazem rigorosamente poesia - fazem teologia, mistica, devoção. Quando sentam para escrever, não estão pensando em "fazer poesia": estão pensando em "contemplar a face de Deus". Não são Quintanas - sao Ícaros. Se o caminho de que se servem para chegar até o lugar diante do trono é a poesia, bem, isso é irrelevante para a definição do estatuto pragmático dessa mística. Se o leitor concordar comigo que, pensando a letra do Hino Nacional Brasileiro, não se está, aí, diante de "poesia", mas de narrativa mítico-política instrumental e performativa, agora sim, na forma de poesia, mas, sobretudo, instrumento político, então não vejo como não há de concordar que o fato de o místico servir-se da "forma" da poesia para expressar sua devoção e contemplação deva ser tratado de forma diferente - o que determina o caráter da coisa que se faz é a intenção com que ela está carregada: poesia é poesia, mística, mística, e não será difícil encontrarmos poesias místicas, que são poesia, e não mística, e místicas poéticas, que são mística, e não, poesia.

2. Segundo ponto: o século XIX foi um século iconoclasta. A Teologia só pode passar "incólume" por ele por duas formas: a) desviando-o, como se não tivesse existido ou anatematizando-o, como o faz a Teologia fundamentalista, seja aquela que tecnicamente merece o adjetivo, sejam aquelas que o recebem mais por sua carga de conservadorismo doutrinário e reacionarismo sócio-cultural, tanto faz; e b) cooptando-o de modo acintosamente programático, desfazendo-o sutilmente, transmutando suas declarações de fundo, fazendo de conta que o que se disse ali não foi o que se disse ali, e que o que se descobriu ali não foi o que se descobriu ali. Sem essas duas alternativas que, a rigor, traduzem opção pelo tradicionalismo, resta à Teologia lidar com o fato de que suas mais belas anotações de página constituem mito - e isso desde que nasceu, e até hoje.

3. Dizer que as mais belas anotações de página da Teologia são mito é dizer que a Teologia sabe que essas palavras são dela mesma, inventadas por ela, inocentemente, vá lá, despudoradamente, muitas vezes - nesse caso, não faz diferença: seja a mula-sem-cabeça, seja Papai Noel, estamos diante de mitologias populares. O fato de que haja mitologias sofisticadíssimas (como as egípcias, por exemplo) não é relevante. Não estou dizendo que, dado o fato de se tratar de mito, não tenha valor ou seja necessariamente dispensável, descartável. Os mitos são o modo como a humanidade se instala sobre a superfície inatingível do real - o mito é a forma como o real transforma-se em "realidade", digamos assim. O problema é quando tomamos os mitos pelo próprio real, ou quando, cientes da diferença, cuidamos que vivemos... nos mitos... Isso para falar do problema que nós mesmos nos colocamos, porque ainda há o problema que os outros nos colocam - o problema da manipulação política dos mitos, o problema básico da reLigião e, mais recentemente, dos Estados nacionais modernos que, sob certo aspecto, assumiram para si o centro de gravidade de operação dos mitos - Pátria, Mãe, Morte... adorada, amada, salve!, salve!...

4. Pois bem, deixem-me dizer, agora, o que vim dizer: a poesia não é um caminho alternativo "melhor" para a Teologia, como se a doutrina estivesse num patamar de inferioridade instrumental em relação à "arte". Seja a doutrina, seja a poesia, quando se faz o que se chama (até aqui) de Teologia, então o que se está fazendo é transportar para um registro determinado - a "declaração de fé" axiomática, a poesia - uma "narrativa" mítica pré-existente (= mito!), que dá sustentação ao processo poético ou doutrinário. Não há diferença - exceto na forma - entre uma Teologia que se faça via doutrina e uma Teologia que se faça via poesia, porque as duas cuidam dar conta de algo (isto é, do mito!) que, deviam saber, é criatividade intrinsecamente humana.

5. Pode-se falar de Teologia poética e de Teologia doutrinária como "formas" distintas de se fazer a mesma coisa - em essência, trata-se de falar de algo que se concebe de um modo determinado. A poesia não nasce e se forma antes da narrativa - a poesia é, quanto à forma, uma expressão, uma retórica, uma máscara. A poesia, na Teologia, é segunda, é mediaão. Mas mediação entre o fiel e a fé, entre o crente e a crença - a auto-imagem que a Teologia poética faz e vende de si como mediação entre o fiel, o crente, e a divindade, bem, disso sabemos tratar-se racionalização mítica - ao menos aqui se assume que sim. A idéia de que a Teologia, servida em drágeas poéticas, seja mais "eficiente" do que a Teologia doutrinária incorre no equívoco de racionalizar o objeto sob interesse em questão - a "divindade e seus "mistérios" - sob o efeito do regime descritivo doutrinário: porque a poesia "sabe" que a "divindade" se comporta assim ou assado, ela então "sabe" que o seu modo - "poético" - de chegar até "lá" é mais eficiente do que o modo doutrinário. Ora - não fora a "doutrina", anterior, nesse caso, à poesia, a poesia vagaria sem saber para aonde, tartamudearia incomunicáveis balbucios ininteligíveis - e ao contrário, centenas de estrofes!, conquanto não chegue a ter a bocarra escancarada dos neo-ortodoxos alemães que, em matéria de dizer, mede-se-lhes às toneladas... Pode-se falar de distinção de formato de apresentação - até de "caminho" (de fato, uma Teologia poética tende a ser menos rígida, logo, mais tolerante) -, mas não se pode tratar a Teologia poética como algo substancialmente diferente da Teologia doutrinária.

6. Salvo, anote-se, se não se tratar de poeisa, mas de - tecnicamente falando - metáfora. Há em fermentação uma proposta de Teologia que a) começa na comunidade, b') passa pela tradição (enquanto meramente tradição), b'') espelha-se nas palavras dessa tradição e c) retorna à comunidade, sempre de modo instrumental e pastoral, sem qualquer referência "univocizante" à ontologia e à metafísica - ou seja, uma Teologia que diz que diz, mas efetivamente não disse, e o que diz diz apenas na intenção pastoral do "cuidado" do rebanho. Não estamos diante de poesia aqui, conquanto o formato seja poético, evidentemente. Já me referi ao fato de que a casca poética de uma peça literária não determina a sua pragmática - a pragmática está assentada sobre a intencionalidade programática da ação humana que maneja a peça. Não estou convencido de que seja possível fazer Teologia como autêntica poesia, assim como não estou convencido de que se pode fazer política como autêntica poesia - ainda que se possa usar, e bem, a poesia tanto para a política quanto para a religião.

7. Qual a relevância - ou o significado disso? Bem, em última análise é desfazer a aparência de que, caminhando por meio do recurso poético, está-se fazendo algo diferente do que se fez até aqui. Não, não está. A superfície da ação pode até parecer diferente a olhos menos atentos, eventualmente, menos informados. Mas basta que olhos mais argutos pousem sobre a flor exposta às patas dos insetos para se perceber o que a flor está a fazer. E toda a vida dessa flor e de sua espécie foi justamente fazer-se ainda mais encantadora, para, feiticeira, ter sob seu corpo muitos ávidos pezinhos delicados...

Partners (Paulo Ricardo / Paulo (PA) Pagni / Luiz Schiavon)
Cássia Eller
Eu pensei Em tanto pra dizer Enquanto esperei Por esse blues, por essa luz Esse solo, Esse som, No colo de Deus (e no seu) Morri de saudades Desse momento Andei tão sozinho Por tanto tempo Por tanto tempo só Eu nem se iSe devo confessar Um certo segredo Uma vontade que dá De repente Um rap, um repente Acorde cordel Que cai do céu Morri de saudades Desse momento Andei tão sozinho, tão só Por tanto tempo.


OSVALDO LUIIZ RIBEIRO

Um comentário:

Prisca disse...

Viva a questão de minha monografia!

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