quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

(2009/628) Lugares de nascer e de morrer


1. Inventamos as maternidades. Antes, caíamos nos braços de parteiras. Quando não morríamos, e, de vingança, levávamos o útero conosco. Morria-se muito de parto. As maternidades tornaram as horas menos mortais...

2. Parece que não temos problemas teológicos e morais com maternidades. A vida, antes, cobrava suas primícias, seus dízimos, e ceifava mulher e criança, quando estava com fome de carne. As maternidades deixaram a vida com fome, porque tem menos carne para comer. Se bem que há as guerras, as pestes, a fome... Escancarada sempre a bocarra da Vida-Morte...

3. Contudo, que horror temos à morte! Não temos lugares para morrer. Não falo dos açougues em que se transformaram certos hospitais sucateados. Não falo de clínicas clandestinas de aborto, porque, sem considerações sobre o tema, é a mãe que leva à morte um feto seu. Se é de direito, se não é, deixo para outra ocasião.

4. Falo do direito que deveríamos ter de morrer, e, com isso, falo mais do que de eutanásia, mas de suicídio, mesmo. Certo, se eu quiser me matar mesmo, mato-me, e não há quem o evitar possa. Um diácono de uma igreja da Baixada, malgrado todos os cuidados da família, parou o carro na Rio-Niterói, e, depois de um certo tempo (que, posteriormente, descobriu-se ter sido usado para assinatura em branco de vinte folhas de seu talão, para facilidades familiares, deixado sobre o banco do carona), com a placidez e determinação de quem faz o que deseja, saiu do carro, subiu na mureta... e saltou...

5. Falo do lugar que devíamos ter, para quando desejássemos ir embora, mas sem transtornos para a família, polícia, corpo a que dar destino, essas coisas. Cansei da vida, não quero mais, informo à família, corrijo o que for preciso, pago as contas, acerto os papéis, pego uma condução, dirijo-me ao lugar de ir, e mato-me lá, com a assistência do Estado. Meus pais meteram-se a me dar a vida - desmeto-me, agora, com o tirá-la, se o quero...

6. Haverá razões religiosas para o espanto que meu leitor, agora, experimenta. Mas haverá razões... humanas?, civis? Um há que se decida, porque jaz entrevado, outro, às portas de uma gravíssima doença, dolorosíssima, outro, simplesmente, de tédio. Que importam as razões?

7. Hum, temos medo de que a decisão seja impensada? Como o quê?, casamentos, que se arrastam, infernais, a vida toda?, um poço de miséria da alma de um e de outro? Como o quê?, eleições, em que escolhemos um patife que se vestia de anjo?, um ladrão, disfarçado de bom-moço? Como o quê?, aquela amizade, pessoa em quem confiamos, e, agora, nos enfia a faca às costas? Bem, a vida é, também, isso - as escolhas, as decisões erradas. O que é humanamente verdadeiro que não corra risco de ser - também - uma escolha errada? Seja como for, uma coisa é certa: escolher a morte, placidamente, como que assina o papel do cartório, será a única decisão para a qual não haverá nem remorso nem arrependimento...
8. Bem, quanto às preocupações da Morte, ela pode ficar tranqüila. São, de fato, poucos os que desejariam morrer. Esses assobiariam à morte, por assim dizer. Mas as delícias da Dona Coisa Feia continuará sendo, afinal, chegar onde não é bem-vinda, à hora em que não é bem-vinda, e levar embora quem mais queria ficar aqui, desgraçada... A Morte, além de tudo, é estrábica... Tanta gente pra levar, e erra o alvo, maldita...


OSVALDO LUIZ RIBEIRO

Nenhum comentário:

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...

Sobre ombros de gigantes


 

Arquivos de Peroratio