sábado, 26 de setembro de 2009

(2009/493) Jimmy Carter deixa a Southern Baptist Convention


1. Recebo do Élcio Sant'anna e-mail "repercutindo" a tradução de artigo de Jimmy Carter, publicado em 12/07/09 no The Observer, da Inglaterra, dando conta de seu afastamento da Southern Baptist Convention (Convenção Batista do Sul dos Estados Unidos). O e-mail consiste da transcrição da tradução do artigo feita por Gustavo K-fé Frederico, e publicada originalmente em 20/09 no Pavablog.

2. Eis a transcrição, direto do Pavablog:

Ex-presidente Carter deixa Convenção Batista

Jimmy Carter
The Observer, Domingo, 12 de Julho de 2009


“Toda pessoa tem capacidade para gozar os direitos e as liberdades estabelecidos nesta Declaração, sem distinção de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição. “ (Artigo II, Declaração Universal dos Direitos Humanos)

“Desse modo não existe diferença entre judeus e não-judeus, entre escravos e pessoas livres, entre homens e mulheres: todos vocês são um só por estarem unidos com Cristo Jesus.” Gálatas 3.28

Eu tenho sido um Cristão praticante toda a minha vida e um diácono e um professor da Bíblia por muitos anos. Minha fé é uma fonte de força e conforto para mim, assim como crenças religiosas são para centenas de milhões de pessoas ao redor do mundo.

Então minha decisão de cortar meus laços com a Convenção Batista do Sul [dos Estados Unidos] depois de seis décadas foi dolorosa e difícil. Foi, contudo, uma decisão inevitável, quando os líderes da convenção, citando alguns poucos versos bíblicos selecionados cuidadosamente e reivindicando que Eva foi criada ocupando segundo lugar depois de Adão e foi responsável pelo pecado original, mandaram que mulheres sejam “subservientes” a seus maridos e proibidas de servir como diáconas, pastoras ou capelães no serviço militar. Isto estava em conflito com minha crença – confirmada nas escrituras sagradas – de que nós todos somos iguais aos olhos de Deus.

Esta visão de que mulheres são de alguma forma inferiores aos homens não está restrita a uma religião ou crença. Está muito difundida. Mulheres são impedidas de exercer um papel total e igual em muitas fés.

Tragicamente, sua influência não pára nas paredes das igrejas, mesquitas, sinagogas ou templos. Esta discriminação, atribuída a uma Autoridade Suprema injustificadamente, proveu uma razão ou desculpa para a depravação dos direitos igualitários das mulheres ao redor do mundo por séculos. As interpretações masculinas de textos religiosos e a forma com que elas interagem e reforçam práticas tradicionais justificam alguns dos exemplos mais patentes, persistentes, flagrantes e danosos de abusos de direitos humanos.

Mais repugnante, a crença de que mulheres devem ser subjugadas aos desejos de homens escusa a escravidão, violência, prostituição forçada, mutilação genital e leis nacionais que omitem estupro como crime. Mas também custa para muitos milhões de meninas e mulheres o controle de seus próprios corpos e vidas, e continua a negar-lhes acesso justo a educação, saúde, emprego e influência dentro de suas próprias comunidades.

O impacto dessas crenças religiosas toca todos aspectos de nossas vidas. Elas ajudam a explicar porque em vários países meninos são educados antes de meninas; porque dizem às meninas quando e com quem elas devem casar; e porque muitas se deparam diante de riscos enormes e inaceitáveis na gravidez e parto porque suas necessidades básicas de saúde não são supridas.

Em algumas nações islâmicas, mulheres são restritas em seus movimentos, punidas por permitir a exposição de um braço ou tornozelo, privadas de educação, proibidas de dirigir um carro ou competir com homens para um trabalho. Se uma mulher for estuprada, ela é frequentemente punida o mais severamente possível como a parte culpada no crime.

O mesmo pensamento discriminatório está por trás da constante distância entre gêneros em salários e do motivo pelo qual ainda há tão poucas mulheres políticas na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos. Esse preconceito está profundamente enraizado nas nossas histórias, mas seu impacto é sentido todos os dias. Não são somente mulheres e meninas que sofrem. Ele danifica todos nós. A evidência mostra que investir em mulheres e meninas produz benefícios substanciais para todos na sociedade. Uma mulher educadas tem crianças mais saudáveis. Há mais chance de ela mandá-los para a escola. Ela ganha mais e investe o que ganha na sua família.

É simplesmente uma derrota a si mesma qualquer comunidade discriminar contra metade da sua população. Nós precisamos mudar essas atitudes e práticas que servem a si próprias e antiquadas – como estamos vendo no Irã onde mulheres estão na linha de frente da batalha pela democracia e liberdade.

Eu entendo, contudo, porque muitos líderes políticos podem relutar em pisar nesse campo minado. Religião e tradição são áreas poderosas e sensíveis para desafiar.

Mas meus colegas Anciãos e eu, que viemos de várias fés e históricos, não precisamos mais nos preocuparmos com ganhar votos ou evitar controvérsias – e nós estamos profundamente comprometidos em desafiar a injustiça aonde quer que a vejamos.

Os Anciãos decidiram chamar a atenção em particular para a responsabilidade dos líderes religiosos e tradicionais de garantir igualdade e direitos humanos. Recentemente publicamos uma declaração que afirma: “A justificativa da discriminação contra mulheres e meninas baseada em religião ou tradição, como se fosse prescrita por uma Autoridade Superior, é inaceitável.”

Nós estamos conclamando todos líderes a desafiar e a mudar os ensinos e práticas danosos, não importando quão entranhados, os quais justificam a discriminação contra mulheres. Nós pedimos, em particular, que líderes de todas as religiões tenham a coragem de reconhecer e enfatizar as mensagens positivas de dignidade e igualdade que todas as grandes fés do mundo compartilham.

Embora não tenha estudo em religião ou teologia, eu entendo que os versos cuidadosamente selecionados encontrados nas escrituras sagradas para justificar a superioridade dos homens se devem mais ao tempo e ao lugar – e à determinação de líderes masculinos que mantêm sua influência – do que a verdades eternas. Trechos bíblicos similares poderiam ser achados para apoiar a escravatura e o consentimento tímido a ditadores opressivos.

Ao mesmo tempo, estou também familiarizado com as descrições vívidas nas mesmas escrituras nas quais mulheres são reverenciadas como líderes proeminentes. Durante os anos da igreja Cristã primitiva as mulheres serviram como diaconisas, pastoras, bispas, apóstolas, professoras e profetisas. Foi só no quarto século que os líderes Cristãos dominantes, todos homens, torceram e distorceram as escrituras sagradas para perpetuar seus cargos superiores dentro da hierarquia religiosa.

Eu sei, também, que Billy Graham, um dos Cristãos mais amplamente respeitados e reverenciados durante meu tempo, não entendeu porque mulheres foram proibidas de serem pastoras e pregadoras. Ele disse: “Mulheres pregam ao redor do mundo inteiro. Não me incomoda, de acordo com meus estudos das escrituras.”

A verdade é que os líderes religiosos masculinos tiveram – e ainda têm – uma opção de interpretar os ensinos sagrados ou para exaltar ou para subjugar mulheres. Eles escolheram, para seus próprios fins egoístas, predominantemente esta.

Sua escolha contínua fornece o fundamento ou a justificativa para grande parte da perseguição dominante e do abuso de mulheres ao redor do mundo. Isto está em violação clara não somente da Declaração Universal de Direitos Humanos mas também dos ensinos de Jesus Cristo, do Apóstolo Paulo, de Moisés e dos profetas, de Maomé, e dos fundadores de outras grandes religiões – todos os quais conclamaram o tratamento próprio e igualitário de todas as crianças de Deus. Chegou a hora de termos a coragem de desafiar essas visões.

Jimmy Carter foi presidente dos Estados Unidos de 1977 a 1981. Os Anciãos (Elders) são um grupo independente de líderes globais eminentes, agrupados por Nelson Mandela, que oferecem suas influências e experiências para apoiar a construção da paz, ajudar a lidar com as principais causas de sofrimento humano e a promover interesses comuns da humanidade.

3. Algumas breves considerações. Já havia ouvido falar desse realinhamento misógino da Southern Baptist Convention (1). Deplorável. Mas se trata, afinal, da mesma região escravagista de há duzentos anos, e ainda muito, muito fortemente racista. A misoginia é apenas mais um traço do caráter dessa região. É lamentável que o povo do sul dos Estados Unidos, não marcado por eses traços imorais, porque acredito que haja gente saudável ali, não tenha forças - e se tem, não a usa - para limpar esse câncer, essa alma de KKK, para extirpar esse tumor. Recuso-me a citar versos bíblicos para defender a igualdade entre brancos, negros, homens e mulheres. Se a Bíblia defendesse escravidão - e há passagens até que a legitimam e/ou a toleram! - ou o tratamento das mulheres como inferiores - e há, sim, inúmeras passagens que inferiorizam as mulheres, e legitimam seu tratamento misógino -, eu simplesmente dava de ombros, e optava pela mulher, pelo negro, pelo homem livre. A Bíblia, aí, está errada. Quem diz amar a Deus e aborrece seu próximo é mentiroso - até, eventualmente, autor sagrado que o faça...

4. "Mas meus colegas Anciãos e eu, que viemos de várias fés e históricos, não precisamos mais nos preocuparmos com ganhar votos ou evitar controvérsias – e nós estamos profundamente comprometidos em desafiar a injustiça aonde quer que a vejamos". Eis, aí, confessada, a razão porque muitos dos postulantes a pastores "fazem contas", quando estudam Teologia. Medem o que devem e o que não devem aprender em função das contas que fazem, dos cargos que querem, dos projetos que almejam, e permanecem pactuados com toda sorte de imoralidade política. Oxalá nossa geração não precise chegar à velhice para ter coragem. A comodidade de o dizer somente quando velho carrega sobre si o crime de acobertar-se, enquanto jovem e político, os crimes que a velhice denuncia, mas a juventude já reconhecia. Desde 1999 os batistas do sul afirmam a inferioridade da mulher - isso faz já 10 anos!

5. "Embora não tenha estudo em religião ou teologia, eu entendo que os versos cuidadosamente selecionados encontrados nas escrituras sagradas para justificar a superioridade dos homens se devem mais ao tempo e ao lugar – e à determinação de líderes masculinos que mantêm sua influência – do que a verdades eternas. Trechos bíblicos similares poderiam ser achados para apoiar a escravatura e o consentimento tímido a ditadores opressivos". Não é preciso mais nada a ser dito. Esse parágrafo encerra a mais lúcida compreensão da visão geral das Escrituras. Mas não é apenas um arranjo ou outro de versículos que constitui dívida ao tempo e ao lugar - tudo nelas, absolutamente tudo na Bíblia é próprio de seu tempo e de seu lugar. Nada há, ali, que não seja cultural, circunstancial, histórico. A fé, eventualmente, que aprenda a lidar com isso e não esconda tão ululante obviedade das consciências.

6. Os batistas brasileiros, lamentavelmente, nesse aspecto, descendem dos batistas do sul. Há um DNA político-direitista, machista, fundamentalista, em nós. É necessário que reconheçamos nossa origem, se temos consciência e orgulho de sermos quem somos. Mas a consciência passa pelo reconhecimento de que há imoralidades profundas, crimes monstruosos, em nossa tradição "sulista", imoralidades de ordem política, antropológica, tradicional, que precisam ser extirpadas. O tratamento inferior concedido às mulheres é, apenas, um deles. Mas igualmente nefasto é um biblicismo de cabresto, máquina da manutenção da irracionalidade espiritual que grassa em nosso meio, e que permite aos loucos de plantão manipularem com toda a facilidade nosso rebanho.

7. Demoraste, Jimmy - e muito! Mas antes tarde do que nunca.


OSVALDO LUIZ RIBEIRO

(1). Para uma descrição breve da "tomada de poder" (takeover) dos fundamentalistas na Southern Baptist Convention, cf. Yurica Report. Para a história toda, em detalhes, cf. The Fundalemtalism Takeover in the Southern Baptist Convention. Quero distância desse povo, enquanto forem o que são, e afirmarem que afirmam.

2 comentários:

Robson Guerra disse...

Oi, Osvaldo

Acho que no mês passado, se não me engano, teve um encontro de pastores lá na PIB N. Iguaçu.
Alguns dos pastores convidados para palestrar erma de lá, da Convençã Batista do Sul (dos EUA).
Que coisa, hein? Mesmo depois do que aconteceu ainda querem ouvir gente de lá?

Peroratio disse...

Sim, há. Há quem os considere "servos de Deus". Deus tem, decerto, modos estranhos de agir...

Oxalá seja uma onda passageira, uma falsa impressão, um falso passo. Se essa planta cresce aqui, vai levar décadas para arrancar, depois.

Se somos fndamentalistas, e somos, anda podemos os afundar ainda mais.

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