1. Onde quer que estejas, cava profundamente,
em baixo fica a fonte.
Deixa os homens sombrios gritar:
'em baixo fica sempre o inferno'...
(A Gaia Ciência, Aforismo 3)
2. Provavelmente - está na moda dizê-lo - eu leia errado tão importante Aforismo. Eventualmente... Na hipótese, contudo, de eu o ler adequadamente, soa um tanto imprópria a citação de Nietzsche nos trabalhos de Rorty, Vattimo e mais não-fundacionistas. Aliás, não me recordo - surpresa! - de alguma vez - uma, bastaria - ter lido esse Aforismo nas defesas do vazio epistemológico pragmatista (Rorty) e "hermenêutico" (Vattimo). Não, jamais o li. Nem o lerei. Porque esse Aforismo, para a epistemologia não-fundacional, é como as declarações de fé das denominações cristãs (e a epistemologia não-fundacional que é, se não declaração de fé?): ei, esse versículo aqui não "bate" com essa doutrina aí... tira o versículo!, tira o versículo!...
3. Nem horizontalmente, para os lados, nem verticalmente, para cima - é para baixo, para muito baixo que somos animados a cavar. Cavar! E profundamente. Saboreio o advérbio, como a espezinhar esse modismo ectoplasmático: p-r-o-f-u-n-d-a-m-e-n-t-e.
4. Quiçá não seja breve, que tarde quanto tarda a felicidade dos dramas do cinema, mas haverei de, contudo, dar uma notícia a Nietzsche, quando nos encontrarmos - porque nos haveremos de encontrar, porque, de um jeito ou de outro, onde ele está, lá estarei eu - sem dúvida! Terei de notificá-lo de uma necessária ampliação da circunferência cosmogônica de seu Aforismo. Ele deve inflar, para caber mais gente....
5. É que, quando Nietzsche o escrevia, a julgar pela presença do "inferno" aí, era de teólogos que ele falava, não mexa aí, homem de Deus!, não mexa aí! Os teólogos eram os gritadores das ruas: não cava!, não cava! Que se danassem de gritar, cavássemos...
6. Contudo, surgiu, eu devo avisá-lo - mas insito, que demore a má notícia -, um novo tipo de homens. Talvez até um novo tipo de "teólogos"! Aqueles que inventaram de não haver chão, que gostam de chamar por "fundamento" - um não-chão, um não-fundamento. Não havendo fundamento, não há nem onde nem o que cavar.
7. Assim, pobres de nós, escapamos das garras dos teólogos (e eu, um deles, mas, como a cigarra, deixei a casca em kantiano tronco, e voei), mas caímos nos palpos de uma classe "nova", a ser melhor definida após o diagnóstico, mas que se conhece pelo fato de ser tomada pelo "toque" do não-real: "eh, não tem chão! eh, não tem chão!", cochicham entre dentes, enquanto esperam a balconista trazer o adoçante, posto zelarem bastante pela aparência...
8. Quanto a mim, nado contra a corrente da teologia vecchia, e, agora, afasto-me dos rochedos sobre o quais gorjeiam sereias hermenêutico-pragmatistas (1). Fico com os conselhos sapientíssimos de meu velho amigo Nietzsche, escritos a martelada no fundo e nas paredes do poço, e que vou lendo, enquanto obedeço: cava, rapaz, cava... Mas já vou envelhecendo, homem! Pois então, usa uma retro-escavadeira - mas, pelo amor de Deus, cava!
OSVALDO LUIZ RIBEIRO
1. É imperioso que não se confundam os termos: "pragmática" (que não usei aqui) tem a ver com Aristóteles, Kant, Peirce e Morin, e nada tem a ver, absolutamente nada, com o pragmatismo rortyano. Quanto a hermenêutica, fazer o quê? O termo é usado por qualquer um. Pois bem: valho-me do sentido próprio daquele moldado pelo percurso que vai de Kant ao primeiro Heidegger, e saio correndo só ao ouvir o nome do segundo Heidegger e dos descaminhos pelos quais a hermenêutica se viu (des)caminhando. Esta, renego. Aquela, acaricio. O que Vattimo chama de hermenêutica é um "discurso", um topos semântico, um "depósito de fé". Xô!
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