1. "Tirem o Sofá da Sala" ou "O Problema da Epistemologia e/ou da Hermenêutica Não-fundacional" - é o título que dou a esse ensaio-provocação, que rabisco enquanto aguardo a chegada de meus guerreiros do Tribal Wars. É uma referência um tanto irônica - está bem, totalmente irônica - àquela piada: um sujeito entra em casa, sem avisar, e pega a esposa com outro - no sofá. Indignado, ele resolve... tirar o sofá da sala. A "Hermenêutica Não-fundacional" tirou o sofá da sala...
2. Vamos ao "histórico". O Ocidente saiu de dentro do ovo do diabo, quero dizer, aquele período "teocrático" (teocracia, lembrem-se, é o modo como alguém decide chamar seu próprio modo de governo, só porque ele se faz, retoricamente, por meio da referência aos deuses: mas eu sei, tu sabes, ele sabe, nós sabemos - quem governa é ele mesmo, e Teocracia so é nomenclatura legítima se o monarca se chama Teo) em que esteve encarcerado o Ocidente. Ah, sim, pode - apenas pode, mas não é garantido, necessariamente - ser que a Igreja, afinal, preste-se a bons serviços para a comunidade. Mas, certamente, não quando ela se põe a ser, também, Governo. Se já não é boa coisa quando o faz intra-muros, metendo-se a legisladora e juíza de terceiras consciências, imagine-se o que não era de infernal e dantesco um clero de cetro e toga! Deus nos livre!, como nos livrou, aleluia!
3. Mas era asim, e saímos de lá. Isso tem o quê?, uns duzentos anos... Pois bem, a isso seguiu-se uma fase excitante e nervosa: a reprogramação da cultura ocidental, em sentido amplo. O Ocidente precisava ser re-programado, re-orientado, re-fundado. Sem a Igreja, reduzida à condição de experiência do privado - em todos os casos, não-Estatal (ao menos o papel, claro), o Ocidente precisava ser re-inventado. Essa reprogramação do Ocidente passava pela Ética e pela Moral, de um lado, e pela Epistemologia e a pela Hermenûtica, de outro. Naturalmente, porque, de um lado, os homens ainda precisavam lidar com outros homens (política, ética, moral) e, de outro, os homens mais do que nunca precisavam lidar - eles mesmos! - com o real (ciências, hermenêutica, epistemologia).
4. Não foi fácil. Não é fácil. No final do processo, que durou cem anos, mas já havia começado, quanto às ciências duras (ditas, "da natureza"), outros cem antes, e mais um pouco, até, Dilthey propôs, e foi aceito, um armistício entre Ciências da Natureza e Ciências Humanas (as Ciências ditas "exatas" apareciam como instrumentais, então). Inventou-se o verbo-chave "entender", para a Natureza, e o verbo-chave "compreender", para o Homem. Um tipo de ciência, entende as coisas, um outro, "compreende". E á vivemos assim, xifápagos separados, por uns bons setenta anos.
5. Felizmente, as Ciências Cognitivas, os modelos de pesquisa transdisciplinar (UNESCO) e a Epistemologia Complexa estão e vias de superação desse arcabouço teórico disjuntivo. Não chegamos exatamente lá, ainda, mas o futuro é promissor.
6. Enquanto isso, era de se esperar, que risco se corria? De um lado, uma fixação no "entender" -positivismo. De outro lado, uma fixação no "compreender" - relativismo. Nos dois casos, secção do "real". Nos dois casos, fragmentação do olhar humano. Um empirismo descuidado dos fatores teórico-metodológicos que envolven as elaborações cérebro-mentais do "real" peca por ingenuidade. Quanto a isso, convém ler Charles Sanders Peirce e sua Semiótica - que me parece ter proposto a "teoria" mais adequada para a relação cérebro-mental entre o homem e o "real" - primeiridade (a coisa como ela é), secundidade (a coisa conforme eu a concebo), terceiridade (o eu, concebedor hermenêutico-semiótico da coisa-real, conforme concebida na secundidade). O real está lá, mas eu o acesso semiótico-hermeneuticamente. O livro está traduzido.
7. No outro extremo, caiu-se no relativismo. O relativismo, qualquer que seja ele, constitui-se por uma axiomática decisão de não mais considerar o "real" como critério crítico do "saber", e, de outro lado, super-valorizar a expressão interpretativa da consciência humana. Sim, é verdade, o real, ou melhor, a relação humano-hermenêuica com o real é problemática. Muito problemática. A descoberta teórico-metodológica da dimensão hermenêutico-cultural em que vive o homem trouxe problemas graves para não apenas a teoria do conhecimento - o que é conhecer?, como ter certeza de que "conhecemos"? - mas para todas as expressões humanas.
8. Num contexto desse tipo, parece-me que almas há muito acostumadas a viverem com as cerâmicas do chão todas firmes e niveladas, ressentem-se de uma existência sem chão aparafusado. Ora, um retorno cartesiano ao "eu", um retorno platônico à "idéia", mas, agora, disfarçado, contudo, por uma retórica de Linguagem (Wittgenstein, o segundo Heidegger), de Tradição (Gadamer) de Comunicação (Rorty e Habermas) - mas nada disso avança um centímetro para além de Platão e, em certo sentido, Descartes -, não-fundacionismo epistemológico, condição negativa da matéria como veículo de conhecimento, primazia do pensamento, solipsismo, com a diferença que o solipsismo platônico-cartesiano é subjetivo, ao passo que o das hermenêuticas não-fundacionais é coletiva: alucinação e grupo...
9. Se o real é o problema (e o era para Platão e Descartes - o real não é confiável!), e se, afinal, nos bastam - bastam?? - a Linguagem (Novo Deus), a Tradição (Novo Cosmos) e a Comunicação (Novo Espírito), então por que manter o real? Suprima-se o real! Mas ele continua aí... Finge que não... Mas... Ei! Nós, aqui reunidos lingüisticamente em tradição e comunicação, se nós decidirmos que não há real, e, ao menos, se há, nem fede nem cheira, decidido fica que não há real, pronto: funda-se a hermenêutica não-fundacional, hermenêutica sem real, hermenêutica de casinha, hermenûtica de vamos-fazer-de-conta, e pronto. Ah, tá, mas esperem um momento que tenho que ir ali na "casinha"... É o real chamando"...
10. As hermeneuticas não-fundacionais impuseram-se um fundamento: fundaram o não-real. Súbito, os corpos viram almas, as carnes, pensamento, o sexo, linguagem, a verdade, voto democrático... Se a Nasa descobre esse método, vota solenemente que há apenas mil quilômetros apenas entre nós e a Lua, e constrói não mais foguetes, mas uma escada, para chegar lá... Não sei o que estão esperando... Ainda poderíamos dizer que "A Escada de Jacó" era sua profecia...
11. A hermenêutica/epistemologia não-fundacional chegou um belo dia em casa e, coitada, flagrou seu amor em flagrante adultério - no sofá. O que ela fez? Tirou o sofá. O real é o problema? Tire-se essa cosia daqui. Fez igualzinho, se tirar nem pôr, ao mitólogo (e político!) Platão - o pensamento, ah, não, ele não tem parte com a matéria, coisa suja e grosseira. Ele, o pensamento imaculado, desce das alturas da Providência, em quantas de almas, uma a uma, que, fazendo cócegas na barriga, vão se lembrando da verdade... O triste dessa moda não-fundacional é que não pode mais - ela é pós-metafísica, coitada, além de tudo! - brincar de lembrar (os teólogos continuam essa farra, recorrendo à "fé", ai!, ai!). Então, ela resolveu o problema aplicando a moda democrática: a verdade decide-se no voto.
12. Se observarmos mais de perto, veremos que as hermêuticas não-fundacionais tentam uma saída política - interditar o autoritarismo - para um problema não-político. Não vai dar boa coisa isso aí. E sobre isso escreverei a seguir. Por enquanto, fico com essa declaração: o real não se importa em que finjamos que ele não existe. Contdo, se ele der um traque, fede o mundo inteiro. E, se você recolhe destroços no mar, dizendo que é do Airbus, mas não é, o real te diz: não é do Airbus, não, Jobim...
OSVALDO LUIZ RIBEIRO
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