sábado, 18 de abril de 2009

(2009/178) Do perigo de se estar na poesia


1. Meu companheiro de blogosfera, Fanuel, falou, ontem (Um som, 17/04/2009), de viver o momento poético: "do lado de cá da tela, eu vivo o período poético". É bom o momento poético - é bem o que devia ser: sempre, um momento, não mais do que um momento. É bom que esse momento poético se deixe necessariamente intercalar por momentos de sobriedade e lucidez telúricas - fazermo-nos vermes da terra é prudente, conquanto, reconheço, mais austero. E o gosto da terra não é lá sempre muito bom...

2. Digo-o, contudo, em face de seu próprio recurso àquela velha história da sarça ardente: "cada vez que me aproximo do mistério, sinto-me culpado por chegar perto demais do fogo divino. É melhor tirar as sandálias logo, pois o chão é sagrado. A sarça é ardente". Ah, a poesia da sarça ardente... Contudo, quando se desce das nuvens e se cava a terra desde a qual parece ter brotado o arbusto, percebe-se que há alguma coisa de muito estranha, sim, aí, mas não exatamente o que Moisés pensou ter visto, como o próprio texto há de nos dizer, para perplexidade da boa tradução.

3. Qualquer um que o possa, por favor, vai lá em Ex 3,2-3. Seria mesmo muito instrutivo que descesse da estante todas as Bíblias que tiver. Lê-las todas produzirá um efeito de corroboração da longa história que contamos a nós mesmos e a terceiros, aquela história de mistério, de queimar-se a sarça, e não se consumir. Contudo, essa história lembra aquela dos "reis" magos, que de reis só têm a tradição - e não a bíblica...

4. Em hebraico, a história da sarça ardente se conta com dois verbos: queimar e comer (= consumir). Segundo nossas traduções, todas, ciosas da necessidade de serem mantidas as rotativas, o verbo queimar ocorre uma vez, e o comer/consumir, duas. Assim, o efeito é esse: a sarça queima, mas não se consome - vamos lá ver por que não se consome.

5. No entanto, o que está escrito é absolutamente outra coisa. O verbo consumir aparece uma única vez, enquanto as outras duas vezes pertencem ao verbo, sempre o mesmo, queimar. O efeito, desconcertante, é esse: a sarça queima, mas não se consome - a sarça não queima: não há uma corroboração do que antes de afirmara, mas uma contestação, uma negação - primeiro, a sarça queima, mas não se consome, depois, não, não queima, não. Concordo que é a minha contra a multidão de traduções no vernáculo, mas não é difícil que qualquer um aluno de gradução, depois de dois semestres de hebraico, vá lá no texto veterotestamentário (que seja a BibleWorks) e verifique o que estou dizendo.

6. É preciso uma resposta crítica para essa questão - e, convenhamos, a poesia não nos ajudará muito. Ela pode servir até para, depois, veicular os resultados da pesquisa, porque a poesia é veículo, mas não método para coisa alguma. Pode-se fazer poesia de direita ou de esquerda (poesia alguma é neutra), mas só se pode fazê-lo depois da pesquisa. Não será toda essa reverência programática ao "sagrado" um estado, hum "poético", quero dizer, pré-crítico?

7. No fundo, é impossível para a poesia constituir-se uma alternativa à crítica. A poesia pode, apenas, esconder um estado de passividade, de suspensão do juízo crítico, de encobertamento de uma posição política, que, para não assumir-se, disfarça-se em poesia. É um risco. Por outro lado, a poesia também pode servir para a expressão de uma posição política engajada, ostensiva, pública, seja de direita, seja de esquerda. A poesia é apenas momento ou de descanso estético, ou de expressão política. Não é, ela, jamais, momento de produção de conhecimento. Ela é, sempre veículo ou de um conhecimento, ou de um pseudo-conhecimento já articulado, encontrando-se, agora, a voejar pelo ar.

8. É necessária muita poesia, muita, em nossa vida: mas não no momento de arrancarmos da terra a sua substância. Nutrir-se dela, poeticamente, eventualmente.


OSVALDO LUIZ RIBEIRO

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