domingo, 5 de abril de 2009

(2009/141) "Estupro legal" interrompido...


1. Pressionado pelas autoridades ocidentais (Europa e EUA), o presidente do Afeganistão, Hamid Karzai, recuou. Ele havia declarado que sancionaria uma lei autorizando o estupro de esposas que se recusassem ao coito conjugal - a valer, diz-se, para a comunidade muçulmana xiita. Karzai dissera que "a mulher, entre os xiitas, não pode se recusar às relações sexuais com o marido". Assim, se, por qualquer razão, uma esposa xiita recusasse deitar-se sexualmente com o marido, este estaria plenamente no direito de forçá-la. O Ocidente reclamou. O presidente voltou atrás.

2. Aí está. Eu não diria que o Ocidente é a quintessência da civilização - o consumo de drogas, a violência, a prostituição infantil, a corrupção endêmica, a desigualdade social monstruosa, são alguns dos exemplos que desmentem a presunção de que nós, ocidentais, somos "os caras". Não, não somos, não. Contudo, sem hipocrisias desnecessárias, não há como comparar os ganhos individuais (sejam quais tenham sido as razões históricas de sua emergência político-cultural) do Ocidente relativamente ao Oriente, bloco versus bloco. Conquanto lhe falte, ainda, muitos degraus para alcançar, em relação ao gênero masculino, a absoluta igualdade político-cultural, todavia, o valor da mulher, no Ocidente, é relativamente bem maior do que o valor que a mulher tem no Oriente - admissíveis, naturalmente, também lá, as exceções.

3. O curioso é que essa dignidade da mulher, conquistada à força no Ocidente, é verdade, mesmo aqui, entre nós, ocidentais, parece estar ligada a uma "secularização" cultural e civilizatória. Parece - estou errado? - que à medida que um povo se teocratiza (ou mantém-se teocratizado), tanto mais grave aí é a situação da mulher. No Ocidente, não é justamente no ambiente das religiões monoteístas, mas não apenas aí, o lugar onde as mulheres ainda enfrentam obstáculos à sua participação absolutamente preoporcional aos dos homens nas coisas públicas? Também não é aí que o "valor" da mulher alcança uma muito meramente retórica, quando, na prática, faltam-lhe os acessos concretos às práticas acessíveis aos homens? Até hoje, por exemplo, a "principal" religião ocidental - o Cristianismo católico romano - recusa-se a considerar a mulher legitimamente no direito de, também ela, assumir o sacerdócio. No Protestantismo, a situação está confusa, ainda - algumas Igrejas vão modificando as relações institucionais com as mulheres, enquanto outras mantêm-se irredutíveis. É curioso que à mística do Oriente perfile-se, igualmente, o papel não apenas subalterno da mulher, mas seu papel desumanizado.

4. Não é que mulheres não sejam estupradas entre nós - o são, diariamente. Não é que maridos ocidentais não estuprem suas esposas - estupram, sim. Quando isso ocorre, contudo, é um crime que se comete, que, se funcionam bem a sociedade, a polícia e a justiça, acusa-se, condena-se e prende-se. O que falta no Ocidente é a nossa conversão íntima aos valores ocidentais - a rigor, democráticos e de direito, valores de igualdade, de liberdade, de fraternidade. Enquanto a conversão a eles não vem, vamos tentando fazer valer seu ideário por meio de leis e sistemas de fiscalização e punição. Enquanto isso, porções enormes do planeta não apenas desconhecem tais valores, mas ainda oprimem qualquer tentativa de reação da mulher em libertarem-se dos homens e da sociedade que as mantêm cativas.

5. Não é que a mulher, nesses lugares, seja passiva, pacífica, submissa. Não faz sentido uma lei para autorizar estupros domésticos, se aí não há casos de recusa da mulher em entregar-se ao marido. Mas há a recusa - e Deus sabe por que razões! -, logo, há a "contra-reação reacionária" dos maridos enfurecidos, o conluio do sistema social e cultural, e, finalmente, a opressão sobre a tentativa de libertação das mulheres. Patriarcado e cultura jurídica se unem para manter sob controle os corpos de mulher. E Deus os os Deuses homologam o acordo espúrio.

6. Estamos longe, muito longe do Paraíso, e dizê-lo não significa assumir que devemos nos contentar com o que conseguimos até aqui, antes, devemos continuar lutando até a utopia, não posso, por isso, deixar de dizer: viva o Ocidente! Porque ele ainda tem praticamente todos os males do espírito e da carne que há no Oriente (para aqueles que os sofrem, que diferença há entre eles e nós?), e, contudo, sabe-os pecados mortais... Bem, talvez seja apenas mais um pecado do Ocidente, o cinismo e a hipocrisia. Penso que não. Penso que começamos uma nova história, ainda lenta demais para as e os que sofrem. Podíamos andar mais rápido. Mas, ao mens, estamos andando. Que nos perdoem as estupradas o lento andar da procissão...


OSVALDO LUIZ RIBEIRO

PS. Sobre a menina da foto: "A menina Afegã Sharbat Gula foi fotografada quando tinha 12 anos pelo fotógrafo Steve McCurry, em junho de 1984. Foi no acampamento de refugiados Nasir Bagh, do Paquistão, durante a guerra contra a invasão soviética. Sua foto foi publicada na capa da National Geographic em junho de 1985 e, devido a seu expressivo rosto de olhos verdes, a capa converteu-se numa das mais famosas da revista e do mundo. No entanto, naquele tempo ninguém sabia o nome da garota. O mesmo homem que a fotografou realizou uma busca à jovem que durou exatos 17 anos. Em janeiro de 2002, encontrou a menina, já uma mulher de 30 anos e pôde saber seu nome. Sharbat Gula vive numa aldeia remota do Afeganistão, é uma mulher tradicional pastún, casada e mãe de três filhos. Ela regressou ao Afeganistão em 1992". Para ler a história na página da National Geographic, aqui.

2 comentários:

Robson Guerra disse...

Oi Osvaldo.

O pior de tudo é ouvir um certo discurso intelectualizado que diz que a cultura de tais grupos deve ser respeitada, que nós não devemos interferir, pois isso sempre acaba em dominação de um grupo mais forte (o ocidente) sobre o mais fraco, que devemos aprender a respeitar a perspectiva do outro.

Isso me dá um revolta....

E a perspectiva do outro, da outra que é estuprada? Claro, não é o rabo do antropólogo que tá na reta...

Concordo com você, Osvaldo. O Ocidente tem, apesar de seus problemas, muito a contribuir, muito a compartilhar com os outros.

Peroratio disse...

Difícil a questão, Robb, dificílima. Uma vez criada a noção de Estados Nacionais, de "nação", qual o critério ou o direito de um povo intervir sobre as práticas internas de uma nação estrangeira? E, no entanto, olhemos Ruanda, olhemos o Kosovo, olhemos o Timor, olhemos a África sub-humana. Na prática, onde há intere$$e do Ocidente, ele intervém. Se não há intere$$e, ficamos calados.

Quanto ao Afeganistaão, comenta-se que essa reação ocidental ás suas políticas internas deva-se a um endurecimento do presidente afegão diante das investidas militares de um Obama, de quem se esperava uma atitude menos bélica. Como o afegão reclamou, a política de transformá-lo de um "modelo" em um corrupto e fundamentalista islâmico "perigoso" (isto é, "descartável") pôs-se em marcha, orquestrada pelo Pentágono. É o que se comenta na Rede. Política nunca cheira berm, sabemos. Mas isso não muda a situação das mulheres xiitas, coitadas.

Difícil. Muito difícil a questão.

Osvaldo.

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...

Sobre ombros de gigantes


 

Arquivos de Peroratio