Hoje, Jimmy e eu tivemos uma pequena discussão sobre ser ou não "Deus" fundamento da Ética. Jimmy citou um filósofo que afirmava que sim e eu disse que não, e Jimmy me provocou, pedindo um texto meu sobre isso, mas que não fosse baseado em terceiros...
Há muito a dizer sobre o tema.
Não defenderei uma tese - apenas esboçarei argumentos.
Primeiro, os deuses não são fundamento nem da ética nem da moral, conquanto sejam argumentos políticos e, por isso, filosóficos, nesse sentido. Mas nem na prática nem na teoria o são. Com os deuses - com "Deus" - construíram-se discursos de interdição político-social e, desde a famosa narrativa do Éden, percebe-se que sacerdotes têm usado "Deus" para fazer com que pessoas se submetam à sua representação de bem e mal... Mas o próprio texto é do século V a.C., e, se considerarmos que a Torá é aí "inventada" e que o Direito, em Judá, até aí, era civil e público (perdão, mas tenho que mencionar Frank Crüsemann aqui), seremos forçados a concluir que estamos diante de uma "novidade cultural". Antes disso, o Direito, em Judá, não era religioso. Essa tomada do poder jurídico pela classe sacerdotal está desenhada, na forma de mito, no texto do Éden...
Até onde sei, ao menos no leito do rio ocidental, foi o Zoroastrismo que unificou teologia, ética, moral e teodiceia. Os Judaísmos e Cristianismos, herdeiros diretos dele, caminham nessa tradição. E grande parte da Filosofia da Religião, herdeira de tudo isso, idem. Todavia, qualquer crente, mesmo fundamentalista, toma seu livro sagrado e faz a ele críticas éticas escondidas, antes de o aplicar. O que esse crente considera válido, em termos de ética e moral, ele afirma como sendo divino. Mas as coisas que "Deus" teria ordenado no mesmo livro sagrado, que, todavia, esse crente não aplica mais, porque lhe interpôs valores éticos modernos, ele as descarta... Fosse "Deus" de fato fundamento disso, ele cumpriria tudo, desse no que desse...
Que o Estado se serve do controle da força, da justiça, do direito (o que isso tem a ver com "Deus" como fundamento da ética e da moral? Nada. Absolutamente nada. A relação aí é meramente histórica) - isso é um fato. O poder temporal, a Cristandade, operava sob o regime zoroastriano de promover ética e moral - serviços jurídicos, policiais, judiciais - por meio da retórica mitológica do "Deus-fundamento". No fundo, era a força do poder militar e policial que garantia a ordem pública, e, como Voltaire afirma em Deus e os Homens, recorria-se ao "Deus" do teísmo retribuidor para tentar garantir que, em suas casas e pelas ruas, fora das vistas da polícia, os homens, por medo, se comportassem, bem...
Ora, o Estado apenas manteve o uso da força - justiça, direito, polícia. Abriu mão do discurso de "Deus" e, na prática, transformou-se a si mesmo naquele fundamento "divino". Nesse sentido, o Estado moderno é "Deus" secularizado. A sociedade como um todo - seja de modo totalitário, seja de modo democrático, seja por qualquer outra forma de auto-governo - é o fundamento para as práticas éticas e morais, móveis, todas elas, circunstanciais, históricas. Tê-las a sociedade humana, há alguns séculos, projetado no mundo dos deuses é, a meu ver, um capítulo superado da compreensão do estado de alienação humana, desvendado - ou não? - no século XIX.
Não resta dúvida que os valores morais e éticos acumulados por tribos, povos e nações consolidaram-se em pacotes e foram, no todo, projetados mitologicamente nos céus, como ensinou Feuerbach. Esses valores, todavia, não nasceram nem vinculados aos céus nem em pacotes - são resultado de processos milenares de relações interpessoais, culturais, geográficas, históricas. Entre os judeus do Antigo Testamento, você podia entregar sua mulher ao estupro, mas não o seu hóspede. O mesmo vale para sua filha - se os moradores da cidade, por qualquer razão, desejam estuprar seu visitante, entregue-lhe a filha, diz a lei, mas não o visitante... Hoje, você pode deixar o mendigo morrer de fome na sua porta: a polícia sequer entrevistará o dono da casa. Mas não dê palmadas em sua filha, porque o Ministério Público está à espreita... Esses valores são tão fixos, rígidos e fundamentais quanto o "Deus" que os garante e lhes serve de fundamento...
As fontes da ética e da moral são, a meu ver, biológicas e culturais - são resultado histórico e circunstanciado de milênios de administração interpessoal de pulsões biológicas (necessidades, vontades, desejos) e interdições culturais (materializados na forma do "não" que o outro interpôs ao meu desejo). Quando o outro não é dos meus, eu o mato: quando é, preciso negociar os limites de meu desejo e do dele. Essa negociação envolve séculos de ensaios, instabilidades, até que se acomode em modelos testados e funcionais, administrados pelo poder local e pela própria sociedade.
À medida que o grupo dos "meus" se amplia - por exemplo, à medida em que tribos são aglutinadas e convertidas em nação e império (veja o caso da Pérsia!), a ética local tem de ser superada, sem muito tempo de teste e adaptação, por uma ética "global" - e, nesse caso, será imposta necessariamente pelo poder imperial. No caso da Pérsia, Ciro não apenas reuniu as tribos medas, persas e outras, mas, além disso, unificou-as em uma legislação imposta desde cima e legitimou tal legislação nos deuses. O mesmo ocorrerá mais tarde, com o império árabe, igualmente unificado a partir de tribos independentes.
Essa relação entre "os meus" e os "outros" sequer é "humana" - é primata. Assim se comportam chimpanzés: os animais de um bando se cuidam mutuamente, têm regras - mas não deuses! Quanto aos machos de outros bandos, matam, também por esporte, evidenciam as pesquisas. Bonobos, chimpanzés, orangotangos, gorilas. babuínos - os primatas são assim: para os nossos, regras de convivência, para os de fora, as garras e as presas...
Mas não só isso: também o afeto, o cuidado, o carinho. O amor de mãe, humano, sequer humano é - é primata. O que, aliás, em nós, é "nosso"? O riso, talvez...?
Assim, a espécie humana herdou pulsões biológicas, traduzidas em modos de vida animais e, com o passar do tempo, passou administrar esse processo, sem, todavia, afastar-se daquela forma ainda em voga entre os primatas: para os nossos, tudo, para os outros, nada. À medida em que, todavia, a noção - moderna!, moderníssima! - de humanidade vai incorporando todos os homens e todas as mulheres à abstração do grupo humano global, as regras que valem para "nós" vão sendo aplicadas imediatamente (em tese) aos que, até ontem, eram outros, mas, agora, são dos nossos.
Não é o caso dos pretos? Com uma canetada, de instrumentos de trabalho (menos do que bicho!), sem alma, transformam-se em seres humanos... E era "Deus" quem os mantinha escravos, não lhes reconhecendo a alma... Que o mesmo "Deus" hoje lhes conceda morada nos céus é apenas prova da hipocrisia histórica dessa religião, e, quando pouco, revela que "Deus" não é o fundamento dessas práticas, mas apenas o argumento público, de resto, manipulador, para as massas ignorantes - projetos conscientes de Mandeville e Voltaire...
A aula me chama...
Continuo mais tarde...
OSVALDO LUIZ RIBEIRO
Um comentário:
Gostaria de ver o "direito de resposta" do Jimmy. Um boa discussão!
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