domingo, 22 de março de 2009

(2009/099) Pinceladas de Gadamer


1. Único protestante e único representante de língua alemã (tal qual Derrida, reclama da ausência de representantes do islamismo e de mulheres no colóquio), Gadamer foi o que escreveu o menor texto para A Religião - o seminário de Capri (Estação Liberdade, 2000, p. 221-231), organizado por Jacques Derrida e Gianni Vattimo. A rigor, seu texto resumiu-se a uma reação às palestras dos dois organizadores, sem menção aos demais participantes.

2. Não vou comentar o texto. Gostaria apenas de pincelar algumas anotações na tela, uma, a respeito de sua "conclusão" e, outra, a respeito de uma observação que ele faz sobre a relação entre Ocidente e Iluminismo.

3.1 "Aquilo que chamamos de Iluminismo foi um processo na modernidade da Europa cristã.

3.2 Mas, de fato, precisamos refletir sobre tempos mais remotos. Aos poucos começamos a reconhecer que tão grandes culturas antigas, como a chinesa ou a indiana, só há relativamente pouco tempo começaram a debater o Iluminismo europeu tardio. Quando então nos perguntamos por que esse Iluminismo cristão venceu na Europa e não em outros continentes e civilizações, damos um passo adiante para o conhecimento da linha do destino do Ocidente" (p. 225).

4. A constatação/declaração de Gadamer é relevante. O fato de o Iluminismo, a rigor, o portal de entrada do Ocidente na era da "razão", da "técnica" da "ciência", constitui uma idiossincrasia, uma singularidade, desprezível, ou, malgrado seu caráter geográfico restrito, conquanto politicamente representativo, é suficiente para o considerar, enquanto fenômeno, prescindível? O Iluminismo constitui uma face necessária da humanização, uma rotina importante do processo de constituição da emergência do "Homem", um desdobramento histórico-político de potenciais biológicos profundos da espécie, ou, antes, não passa de um capricho de cristãos soberbos, de burgueses em luta contra padres/pastores e monarcas?

5. Naturalmente que o contexto histórico-social, a "situação" concreta - política, cultural, econômica, religiosa - do Ocidente "explica" a emergência do Iluminismo. É provável que outro contexto não permitisse a sua emergência (Gadamer cita os casos China e Índia, mas se pode, igualmente, incluir, aí, a África e a Ásia, a Oceania, conquanto a América e a Austrália, em parte, dada a sua proximidade ideológico-cultural com a Europa). Ora, mas o contexto é, a rigor, a única plataforma operacional da História. A própria emergência da espécie humana - Homo sapiens - é contextual, geo-ecológica. Não haveria de ser diferente em relação a essa "etapa" civilizatória.

6. Se há - e há - elementos negativos no Iluminismo (Gadamer cita a questão dos armamentos de destruição em massa, provenientes da técnica), igualmente se pode indicar equivalentes no próprio processo de hominização/humanização: a Natureza não conhece homicídio, estupro, tortura, pornografia infantil, não há "moral" nem ética" na Natureza - são criações do Homo sapiens. Tudo - absolutamente tudo - quanto humano for, traz consigo risco, porque o que é propriamente humano joga com a liberdade de ação entre o "positivo" e o "negativo, o amor e o ódio, a paz e a guerra, o bem e o mal, a sanidade e a lucura, a fé e a desrazão...

7. Oh, o Iluminismo pôs em perigo a religião... Conversa fiada! O Iluminismo esclarece aspectos da irracionalidade religiosa. Suprimir a abordagem iluminista à religião é defender a irracionalidade religiosa: qui prodest? [traduzo, porque a pergunta latina é uma faca afiada no ventre da política: a quem interessa?, quem ganha com isso?]. E eu nem morro de amores pelo Iluminismo - meu palco, onde danço, é justamente um seu contrário, que, contudo, é, também, um pedaço dele - o Romantismo (enquanto filosofia: "assombro" e "história).

8. Se o planeta, como um todo, não reconhecer no Iluminismo uma etapa importante do processo de humanização da espécie, isso significa que a racionalidade há de ser reduzida a um fóssil, logo soterrado. Sim, a História é aberta, e essa é uma hipótese. O que me assusta, contudo, é o fato de que haja quem considere esse fenômeno de "esclarecimento" uma patologia da consciência ocidental, uma "crueldade", uma "insanidade", um "crime" da razão contra a vestal religião. Considero bastante cínica a sustentação da tese

9. Apenas a "razão" é capaz de "esclarecer" o fenômeno religioso e purgá-lo de suas potencialidades negativas. Com "razão", refiro-me ao processo de fazer passar toda e qualquer experiência religiosa pelo crivo das Ciências Humanas. Um homem religioso que se entende (apenas) por meio da doutrina em que nada e vive (mata e morre) encontra-se rigorosamente sob o poder inexorável dessa doutrina e dessa religião: esse não é um homem, na acepção plena de suas potencialidades como sujeito auto-determinante. Nem me falem do direito de esse homem ser esse animal de carga (como assim o classifica Nietzsche, inequivocamente), porque nunca lhe disseram que a religião em que crê é invenção humana, e que as doutrinas em que crê são invenções humanas - ele se entregou, cegamente, a elas, porque lhe disseram e dizem (até os novos sacerdotes da teologia!), e ele acredita, que são divinas. Mentiram-lhe. Que seja escrito e reconhecido que eu o disse - e diretamente a você, caro leitor, cara leitora: toda crítica aos efeitos do "Iluminismo" sobre a religião é um acordo tácito com as rotinas de alienação humana. E "Deus", senhores, senhoras, é a alienação par excellence (em face do "Diabo", homens e mulheres "defendem-se" - diante de "Deus", abrem a guarda...).

10. Gadamer não sabe se as demais re(li)giões do planeta passarão por essa etapa: muito menos eu: "encontrará o mundo uma outra resposta, da qual ainda não temos a menor idéia?" (p. 225). Julgo a questão, contudo, a partir dos dados que tenho em mãos: é preciso que a religião passe pelo crivo da razão, e que a razão corroa, como ácido, todo elemento de irracionalidade da experiência religiosa. Isso não significa que nada que não exclusivamente racional sobreviva. Significa, antes, que a religião deve reconhecer-se como operação estética e política (mito), abandonando - definitivamente - toda e qualquer pretensão de estabelecer conjuntos de proposições sobre a "realidade" enquanto tal.

11. É justamente nessa declaração que meus críticos se concentrarão. Dirão que preconizo a ditadura da razão sobre a espiritualidade - como se fossem eles os "magos" da espiritualidade (divirto-me com "palestras de espiritualidade"!). A crítica religiosa, isto é, feitas por "teólogos engajados", a uma declaração desse tipo denuncia a auto-imagem que tais teólogos têm de si como eternos sacerdotes, disfarçados, que seja, pela linguagem: o papel que imaginam ter na administração da religião é o de eterno esclarecimento intra-religioso das massas, por meio de palestras, artigos, sermões, aconselhamentos, livros... Um sacerdócio não-sacramental, é verdade, mas, para todos os efeitos, a mesma vocação política daquele que sacrifica o cabrito para que Yahweh não mate Jacó.

12. A liberdade é, sobretudo, a liberdade em face do sacerdote. E, nesse caso, o que tem que ser profundamente mudado é a estrutura de compreensão que cada sujeito religioso tem da religião, de Deus. E - arrisco dizer - a única forma de isso acontecer é por meio da crítica científico-humanista da religião (é certo que tais intuições ocorrem mesmo lá onde o "Iluminismo" não se desdobrou culturalmente - até porque não se explica o "Iluminismo" sem o pressuposto da crítica iluminista antes do "Iluminismo"!). Estratégias de tipo levinasiano mantêm viva, sobre as cinzas da República, a alma da divindade ontológica: o monstro pode entrar em erupção a qualquer momento. Se o Evangelho fosse "iluminista", a TV brasileira ostentaria o despudor dos programas evangélicos? - esse crime contra a consciência humana, essa imundície civilizatória? Mas há quem julgue poder resolver isso, brincando com o mesmo fogo...

13. Finalmnente, concluir com o parágrafo com que o próprio Gadamer termina seu texto: "em resumo: os dois companheiros de diálogo concordam claramente na quetão fundamental de que nem a metafísica nem a teologia podem dar uma resposta científica à questão de saber por que existe alguma coisa, em vez do nada" (p. 231). Sim, o que coloca o assunto em perspectiva pragmática: metafísica e teologia não são exemplos de rotinas pragmáticas heurísticas. Tudo, nelas, é invenção, é imaginação - é mito. Sobretudo a teologia, é pura política, e, quando não, estética. Nunca, jamais, em nenhum tempo, em nenhum lugar, heurística.

14. Naturalmente que uma afirmação assim parte do pressupsto de que a heurística se considera portadora das rotinas de investigação, de pesquisa, de conhecimento. Sim - decerto. Lá, onde a "razão" não deu as caras ainda, o "saber" está misturado não apenas com a "estética", mas, coisa terrível, com a "política": o que os pajés, os xamãs, os chefes, os reis, os sultões, dizem - isso, e só isso, é "saber". Inventamos uma rotina pragmática de distinção entre saber, sentir e querer, entre cognição, afeição e volição, entre conhecimento, mística e relacionamento - entre heurística, estética e política. Por meio dessa invenção ocidental - "verdadeira", logo, imprescindível?, embuste político, coisificação do "poder", logo, superável? -, a teologia revela-se como o que ela, de fato, sempre foi - política. A religião, como o que ela sempre foi: política - e estética. Não se pode, de modo responsável, passar por cima disso. Chega a ser criminoso. Se bem que os crimes de Deus, todos, para eles se conhecem justificativas...


OSVALDO LUIZ RIBEIRO

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