sábado, 21 de março de 2009

(2009/098) Não me entendereis assim


1. Desde que li Nietzsche, nunca mais fui o mesmo, nunca mais serei o mesmo. Não me importa a sua aristocracia - ela é como as substâncias que se agregam, férreas, a uma relíquia submarina. O valor da relíquia é tal, tão grande o desejo de a guardar, relicário bem, que não se furta a mão às raspagens, ao lustramento, à arqueologia do belo. Preciouss, my preciouss...

2. Desde que li Nietzsche, vertidas algumas lágrimas, algumas pela inocência perdida, outras, pela dor da caminhada inaugural, nunca mais eu pude olhar para cima. Ele me disse, uma vez: onde quer que estejas, cava profundamente, embaixo ficam as fontes... E, obediente, eu, desde então, cavo. Cavar é meu pão e minha água. Não é a águia a minha inspiração, mas a toupeira, cega, a tatear, pelo cheiro, as galerias escuras de baixo.

3. Ah, mas o que ninguém sabe, nem suspeita, e eu não conto, é meu segredo, é que o planeta é uma bola, uma esfera, a flutuar, descuidado, no abismo. Quanto mais eu cavo, quanto mais fundo, quanto mais rápido, mais rápido atravessarei o corpo de Gaia, e cairei, livre, no vazio do outro lado... A travessia é longa, é árdua, solitária e cruel, muitas vezes, mas eu cavo, não paro, porque pressinto, farejo o cheiro do vazio logo ali, duas ou três camadas de rocha abaixo. Quem sabe, Nietzsche, quando eu terminar de cavar, e, então, cair, não caia eu, afinal, em cima?, mas por caminhos tão insuspeitáveis que aqueles que me olham, toupeira humana, surpreender-se-ão de ver-me, assim, sujo de terra, entre os seres uranianos?

4. Pode uma toupeira voar? Não me entedereis, nunca, assim. Não é assim que se deve ver a coisa...


OSVALDO LUIZ RIBEIRO

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