domingo, 22 de março de 2009

(2009/100) Dar lugar à situação - legitimar a tradição


1. Deparo-me com um longo artigo de Patrizia Manganaro. Chego a ele através do Oráculo, esse "Deus" a quem se recorre, e ele responde (não é mera analogia daqui para lá, mas de lá para cá, conforme as sábias palavras de Menocchio dirigidas aos inquisidores! - também "Deus" é mercadoria). Oráculo, que me dizes, se te digo "teologia", "fenomenologia da religião", "crítica" e "epistemologia"? Na resposta oracular, surpresa?, as quatro primeiras entradas são Noologia (aqui e aqui) e Ouviroevento (aqui e aqui) [ambos, sítios meus na Rede]. Imediatamente abaixo, logo aparecem Peroratio (aqui e aqui [esse, texto que eu escrevi hoje!]) e artigos que publiquei na Correlatio (aqui e aqui). Como se vê, o Oráculo "sabe" o quanto respiro e transpiro essas questões, desespero-me delas, gasto-me sobre elas, escrevo-as. E o Oráculo não mente! Os Deuses reconhecem os seus...

2. Meu interesse é ler artigos que gravitem em torno dessas palavras, para aproximar-me cada vez mais conscientemente do núcleo nervoso dessa temática - em última análise: alienação versus esclarecimento. Alteridade, filosofia, mística: entre fenomenologia e epistemologia cai-me nas mãos - triste destino! Atravesso-o [verbo dúbio!]... Todavia, logo me canso da travessia, porque constituída de um sem-número de lugares comuns, uma interminável e cansativa série de apelos à forma como a tradição mística lê-se a si mesma. Outro dia, talvez, me dedique a quebrar azulejo a azulejo dessa parede. Não hoje, que estou cansado.

3. No entanto, um parágrafo merece uma observação, nem que rápida. Ei-lo:

3.1 "Com que linguagem é possível exprimir o encontro do Eu finito com o Tu eterno?

3.2 Aqui está em jogo a questão, espinhosa, do estatuto epistemológico da linguagem religiosa, relançada pela superação do ateísmo semântico, do isomorfismo lógico, do verificacionismo empírico e da linguistic turn dos anos trinta, com contribuições diversamente fecundas na área “analítica” e “continental”.

3.3 Como argumentado até aqui, “sentir o Outro dentro” é um conhecimento e, como todo conhecimento, é comunicável segundo uma linguagem própria, autônoma, constitutiva. A experiência do encontro com Deus na união transformadora é dizível segunda a lógica do símbolo e não do conceito: onde é possível observar que o racionalismo moderno não confia na linguagem simbólica também quanto à sua extraordinária conexão com a corporeidade (profundamente envolvida na experiência de união mística). O symbolon coloca-se entre o conhecível e o ignorado, remete sempre a outro, a algo que permanece excedente, ulterior, escondido: consegue exprimir a alteridade e a transcendência, mantendo suas peculiaridades, enquanto as torna próximas. A linguagem simbólica é percebida como uma cifra da sacralidade, através da qual o homo religiosus pode ter acesso a um plano diverso do natural e responder à sua vocação específica, isto é, a criatividade. O símbolo, irredutível ao pensamento analítico, não faz referência a entidades específicas, imediatamente perceptíveis, mas a uma pluralidade de “sentidos”: ele é epifania do indizível, “não podendo figurar a irrepresentável transcendência, o símbolo faz aparecer um sentido secreto, é a epifania de um mistério”. Tal manifestação não se resolve em uma exibição sem resíduos, mas se dá somente per speculum et in aenigmate, segundo a indicação paulina"
.

4. Para mim basta. Conquanto os termos "fenomenologia da religião", "crítica" e "epistemologia" estejam presentes - o Oráculo não mente! -, esse texto não dialoga com o XIX (a rigor, aquele tempo e lugar, o único (cf. aqui), desde o qual aqueles termos são plasmados e articulados). O texto pressupõe como "dado", um a priori, o "Eu Eterno", a relação mística não como fenômeno psicológico, antropológico, cultural, noológico, mas como fenômeno de relação entre um "eu" e "Outro Eu" - ou seja, aceita-se a linguagem, o discurso, a cosmovisão, da própria mística, e ainda se chama a isso de conhecimento! "'Sentir o Outro dentro' é um conhecimento"... É?

5. Que, segundo a retórica do artigo, deve-se assumir a linguagem, a ótica, a cosmovisão da própria experiência mística revela-se por meio da "instrução": "aqui está em jogo a questão, espinhosa, do estatuto epistemológico da linguagem religiosa, relançada pela superação do ateísmo semântico etc." (vê, Jimmy, como a "razão" tem de ser cega, porque ter olhos, nessa terra, é tê-los arrancado primeiro?). Primeiro, você se torna "crente", superando o "ateísmo semântico", e, então, tudo faz sentido! Claro - até, primeiro, você aceitar a justificativa do arianismo, em face da qual a raça ariana tem a favor de si a própria evolução natural, a lei do mais forte, sob cuja validade teórica - e não?, não é necessário ter fé, antes? -, faz todo sentido o holocausto, porque, ainda, sob o regime da retórica ariana, o judaísmo é, por essência, virótico e deletério...

6. Patrizia Manganaro pede-me que eu tenha boa-vontade com a auto-legitimação da mística - que eu "supere" o "ateísmo semântico", logo, que eu acate, pacificamente, passivamente, bastante bem platonicamente, a retórica crente. Lamento, não posso. A mística não sabe coisa alguma, e o que ele interpreta como encontro com o Outro não passa da "adição", em sentido aritmético, de cultura/tradição mais arroubo estético, seja o cristão, seja o hindu, seja o aborígene australiano. O "Eu Eterno" aí, seja qual for a sua configuração, não passa de "mito" cultural, que, assumido como "realidade", torna-se psicologicamente eficaz, politicamente eficaz, como eficaz é, para a criança, o bicho-papão ou a fada-dos-dentes, que só desaparecem porque os adultam os matam, mas não a Deus, quando é o caso.

7. Além disso, parece-me conseqüentemente equivocada - e ela não é nova - a afirmação de que "o symbolon coloca-se entre o conhecível e o ignorado, remete sempre a outro, a algo que permanece excedente, ulterior, escondido: consegue exprimir a alteridade e a transcendência, mantendo suas peculiaridades, enquanto as torna próximas". Não é verdade. O que essa retórica trata como "ignorado" é, ao contrário, bem sabido. Toda experiência mística - toda! - é pós-fenomenológica, logo, é, sempre, cultural, vestida com os trajes da língua, da raça, do tempo, do lugar. É, em todos os sentidos, "doutrina", conquanto se manifeste na forma de "esperiência" estética mediada pela doutrina.

8. Na prática, o místico trata por ignorado aquilo que, "racionalizadamente", ele conhece, isto é, ele reconhece por meio do mito que legitima a sua experiência mística. Não é com um "sagrado" indistinto que ele, o fiel, se "funde", mas com aquele sagrado que é a expressão mítico-plástica da doutrina desse sagrado segundo a concebe o fiel e sua tradição/Tradição (nesse caso, poucvo importa a política). Logo, o fiel "sabe" de que(m) se trata, do que se trata, ainda que esse "saber" constitua meramente um adestramento da transcendência, uma colonização do metafísico, um povoamento mitológico do sobrenatural. O que permanece "escondido" é, apenas, a figura imaginada, criada, mitoplasmada - concebida como escondida. Mas esse velamento é estrategicamente necessário, porque toda a mística é platônica, e importa que não se disponha dos mecanismos de testagem dos pressupostos intrínsecos do sistema: o "sagrado" é um axioma noologicamente constituído e reconstituído pela experiência mística, e, aí, não há qualquer mistério - mais!

9. Equivoca-se, arrisco o juízo, toda apologética mística que desconheça o fato de que a Fenomenlogia da Religião descreve os processos fenomenológico-religiosos que levam à própria mística enquanto uma das etapas da rotina do fenômeno religioso de modo geral. O mistério morre no exato momento em que ele se dá - a hierofania. A verdadedeira, por assim dizer, hierofania, é tão somente a inaugural, sem conteúdo, vazia de expressões, de tradição, mas demandante de estratégias de domesticação dessa experiência antropológica de não-conteúdo, logo, irracional. Pois bem - a experiência religiosa, doravante, desdobrar-se-á a partir da interpratação do "fiel", dar-se-á nos termos dessa interpretação, com as personagens dessa interpretação - segundo seu ethos e seu pathos. A última instância da experiência religiosa é uma experiência do fiel consigo próprio, dele com suas imagens - experiência eventualmente (e é raro que não se dê tal crime) cooptada pela política (e a religião não é outra coisa que não a cooptação política das experiências estéticas profundas da espécie humana - e também sua castração criminosa).

10. Não há segredo algum na mística, mistério algum - porque igualmente não, no símbolo. Pelo contrário - toda mística, simbolicamente mediada pela concepção da fé, é uma experiencia de adestramento. Daí que me engajo na "cruzada" de denunciar toda religião, toda fé, toda mística como mito. Porque é impossível propor religiosidade sem o recurso à imaginação humana, sem o recurso à cenografia, à arte, à criatividade, à mitoplástica. O que não se pode, não se deve, é legitimar esse jogo estético como promotor de conhecimento. Não - nunca! É a crítica "esclarecida" - científico-humanista ("romântica" - assombro e história) - desse jogo que é conhecimento. Religião é delírio - legítmo, que seja, necessário, eventualmente, mas delírio...


OSVALDO LUIZ RIBEIRO

PS. o parágrafo analisado encontra-se em Patrizia Manganaro, Alteridade, filosofia, mística: entre fenomenologia e epistemologia, Memorandum, 2004, n. 6, p. 3-24, disponível aqui.

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