1. E é um "conservador" quem o diz: desde cerca de 1745, a Teologia Bíblica e a Teologia Sistemática não dialogam, porque escolheram plataformas epistemológicas mutuamente excludentes. Quem o diz é Gerhard F. Hasel, num dos, segundo minha opinião, raros livrinhos de teologia bons que a JUERP publicou - Teologia Bíblica do Antigo Testamento: questões fundamentais no debate atual, JUERP, 1987 [1972], p. 15-16.
2. É fácil entender porque a Teologia Bíblica e a Teologia Sistemática não se entenderam - nem se entendem. A TS não passa, ainda hoje, da sistematização da doutrina, nos termos em que determinado teólogo, "igreja" ou denominação a concebe. Seu berço é a Tradição. Sua "epistemologia" é de base platônica e política. Seu viés é político.
3. Nesse sentido, é muito revelador que Hasel escreva que a primeira fase da "origem" da Teologia Bíblica tenha sido o período imediatamente posterior à Reforma, fase em que a TB era "auxiliar" da TS (p. 14). Ora, como assim "auxiliar"? A Reforma não foi um movimento de caráter "bíblico"? Não, não foi. Nunca foi. Suas doutrinas eram as mesmas da Igreja de onde saíram os reformadores e, com exceção daqueles considerados críticos, próprios da teologia da salvação, seus "tópicos" permaneceram os mesmos: Deus, Jesus, Espírito Santo, pecado, graça, céu, inferno etc. Discutiu-se - apenas - o modus operandi da "salvação". Mas a "essência" da teologia permaneceu intocada. E não se pode dizer que ela era "bíblica". Era tradicional, concliliar, nicênica. Nem deu tempo de os reformadores criarem coisa diferente, nem sei se necessariamente o criariam, tivessem-no: os filhos tendem a repetir os gestos imemoriais dos pais.
4. A Bíblia entra aí como fundamento retórico-político: protestantes versus papais. Os protestantes têm a Bíblia, os papais, o papa. Funcionou... enquanto não havia divergência entre protestantes e protestantes. Seja como for, independentemente da função político-retórica da Bíblia no Protestantismo, o movimento cismático introduziu-a materialmente, quer seja da "teologia", quer seja na multidão. E isso teve repercussões graves. A principal dela foi a sua reinvidicação como fundamento, e não como auxiliar, da TS (Hasel, p. 15). Foi justamente essa reinvidicação, a rigor, uma crítica à TS em face da exegese que começava a grassar como método, uma crítica à ótica do deposito fidei, a razão do cisma entre as duas irreconciliáveis teologias.
5. Depois de uns dois séculos de maturação, avanços, recuos, enfrentamentos, discussões, a disputa entre exegese e teologia normativa chegou a um ponto de ruptura, de modo que, ali por volta da metade do XVIII, a Teologia Bíblica "decidiu" caminhar com as próprias pernas. Até hoje, não há qualquer possibilidade de se porem numa mesma sala um bom teólogo bíblico e um bom teólogo sistemático - nem tradução simultânea resolve o problema.
6. A Teologia Bíblica é uma disciplina histórica. Não tem nenhum interesse a priori em doutrinas, fé, dogmas, normas - nem de as reproduzir, nem de as desbancar. Quer apenas saber o que criam aqueles escritores e aquelas escritoras, compreender seu mundo, compreendê-los. A TB sabe que o conjunto da TS, sem exceções honrosas, sustenta-se na apropriação, à guisa de fundamento, de pronunciamentos interpretativos e teológicos desenvolvidos durante os séculos de funcionamento da igreja cristã. No que diz respeito ao Novo Testamento, é possível que uma doutrina ou outra sobreviva a uma crítica exegética e possa ser sustentada por meio de um verso ou outro - pelo conjunto, jamais! Quanto ao Antigo Testamento, definitivamente, nada, absolutamente nada aí, sustenta o que quer que seja da Teologia Sistemática - não é à toa que teólogos sistemáticos "moderníssimos" gostam do método da metáfora, porque é possível não saber absolutamente nada de Bíblia, nada de Antigo Testamento, e, ainda assim, dizer que a TS pode ser "fundamentada" por meio de exercícios alegórico-metafóricos pós-modernos, com o que se rasgam todos os cânones da Teologia Bíblica, da Exegese, da Gramática, da Sintaxe, da Lingüística, conquanto, não, da Retórica. E pior - pode-se, ao contrário, saber muito bem de Antigo Testamento, e, a despeito disso, escreverem-se coisas inacreditáveis...
7. A única coisa que salvaria a Teologia Sistemática - a metáfora não lhe acrescenta uma gota de sangue, torna-a apenas um zumbi - é a sua transformação em História da Teologia. Nesse caso, ela volta a ser uma disciplina útil, porque é de extrema relevância saber o que se pensava, onde e quando, na História da Igreja, porque até "leis" contemporâneas têm por base "tradições" insuspeitavelmente teológicas - até a Física estuda Teologia, nesse sentido. A História da Teologia deixa de ser uma disciplina apologética - como é a TS - e converte-se em instrumento da crítica histórica, necessária ao aperfeiçoamento da sociedade humana.
OSVALDO LUIZ RIBEIRO
2. É fácil entender porque a Teologia Bíblica e a Teologia Sistemática não se entenderam - nem se entendem. A TS não passa, ainda hoje, da sistematização da doutrina, nos termos em que determinado teólogo, "igreja" ou denominação a concebe. Seu berço é a Tradição. Sua "epistemologia" é de base platônica e política. Seu viés é político.
3. Nesse sentido, é muito revelador que Hasel escreva que a primeira fase da "origem" da Teologia Bíblica tenha sido o período imediatamente posterior à Reforma, fase em que a TB era "auxiliar" da TS (p. 14). Ora, como assim "auxiliar"? A Reforma não foi um movimento de caráter "bíblico"? Não, não foi. Nunca foi. Suas doutrinas eram as mesmas da Igreja de onde saíram os reformadores e, com exceção daqueles considerados críticos, próprios da teologia da salvação, seus "tópicos" permaneceram os mesmos: Deus, Jesus, Espírito Santo, pecado, graça, céu, inferno etc. Discutiu-se - apenas - o modus operandi da "salvação". Mas a "essência" da teologia permaneceu intocada. E não se pode dizer que ela era "bíblica". Era tradicional, concliliar, nicênica. Nem deu tempo de os reformadores criarem coisa diferente, nem sei se necessariamente o criariam, tivessem-no: os filhos tendem a repetir os gestos imemoriais dos pais.
4. A Bíblia entra aí como fundamento retórico-político: protestantes versus papais. Os protestantes têm a Bíblia, os papais, o papa. Funcionou... enquanto não havia divergência entre protestantes e protestantes. Seja como for, independentemente da função político-retórica da Bíblia no Protestantismo, o movimento cismático introduziu-a materialmente, quer seja da "teologia", quer seja na multidão. E isso teve repercussões graves. A principal dela foi a sua reinvidicação como fundamento, e não como auxiliar, da TS (Hasel, p. 15). Foi justamente essa reinvidicação, a rigor, uma crítica à TS em face da exegese que começava a grassar como método, uma crítica à ótica do deposito fidei, a razão do cisma entre as duas irreconciliáveis teologias.
5. Depois de uns dois séculos de maturação, avanços, recuos, enfrentamentos, discussões, a disputa entre exegese e teologia normativa chegou a um ponto de ruptura, de modo que, ali por volta da metade do XVIII, a Teologia Bíblica "decidiu" caminhar com as próprias pernas. Até hoje, não há qualquer possibilidade de se porem numa mesma sala um bom teólogo bíblico e um bom teólogo sistemático - nem tradução simultânea resolve o problema.
6. A Teologia Bíblica é uma disciplina histórica. Não tem nenhum interesse a priori em doutrinas, fé, dogmas, normas - nem de as reproduzir, nem de as desbancar. Quer apenas saber o que criam aqueles escritores e aquelas escritoras, compreender seu mundo, compreendê-los. A TB sabe que o conjunto da TS, sem exceções honrosas, sustenta-se na apropriação, à guisa de fundamento, de pronunciamentos interpretativos e teológicos desenvolvidos durante os séculos de funcionamento da igreja cristã. No que diz respeito ao Novo Testamento, é possível que uma doutrina ou outra sobreviva a uma crítica exegética e possa ser sustentada por meio de um verso ou outro - pelo conjunto, jamais! Quanto ao Antigo Testamento, definitivamente, nada, absolutamente nada aí, sustenta o que quer que seja da Teologia Sistemática - não é à toa que teólogos sistemáticos "moderníssimos" gostam do método da metáfora, porque é possível não saber absolutamente nada de Bíblia, nada de Antigo Testamento, e, ainda assim, dizer que a TS pode ser "fundamentada" por meio de exercícios alegórico-metafóricos pós-modernos, com o que se rasgam todos os cânones da Teologia Bíblica, da Exegese, da Gramática, da Sintaxe, da Lingüística, conquanto, não, da Retórica. E pior - pode-se, ao contrário, saber muito bem de Antigo Testamento, e, a despeito disso, escreverem-se coisas inacreditáveis...
7. A única coisa que salvaria a Teologia Sistemática - a metáfora não lhe acrescenta uma gota de sangue, torna-a apenas um zumbi - é a sua transformação em História da Teologia. Nesse caso, ela volta a ser uma disciplina útil, porque é de extrema relevância saber o que se pensava, onde e quando, na História da Igreja, porque até "leis" contemporâneas têm por base "tradições" insuspeitavelmente teológicas - até a Física estuda Teologia, nesse sentido. A História da Teologia deixa de ser uma disciplina apologética - como é a TS - e converte-se em instrumento da crítica histórica, necessária ao aperfeiçoamento da sociedade humana.
OSVALDO LUIZ RIBEIRO
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