domingo, 8 de março de 2009

(2009/069) Apesar - uma reação


1. Haroldo, eu quero crer que a inclusão da "cena" a que você se refere - o "semi-paralisado" que é curado" - tem a função retória de fazer um contra-ponto ético-político em face da crítica aguda em que o filme se constitui. É o óbio ululante: a crítica do "sistema", do modus operandi do status quo religioso, da política e da prática "cristãs", evangélicas, sobretudo, não poderia pôr todas as experiências religiosas e todas as práticas eclesiásticas sob o regime de terra arrasada. Alguma coisa haveria de ser preservada, porque não é admissível, nem por hipótese, que não haja sinceridade, honestidade e "amor" - verdadeeiros - nesses ambientes. Uma vez que o foco do filme eram os "milagres", um milagre é deixado sob a mesa, para a manutenção da porta aberta, das excepcionalidades presumíveis.
(1.1 A rigor, a situação é tremendamente mais complexa do que um semi-paralisado andar, dispensando os arrimos de pau. Um "bom" evangélico, típico, tomaria como "prova" de milagre divino a cura de um doente qualquer em seu culto, mas, se tal "fenômeno" se der num centro de cura espiritual kardecista, por exemplo, nesse caso esse mesmo cristão "interpretará" o fato como "obra" do diabo, para "ludibriar" a fé dos santos e arrastar a humanidade, por meio do "bem", para o "mal. Um aluno pessoalmente me arrostou tal argumento, outro dia, tomado de pathos divino... No contexto do filme, contudo, a cena tem outra função - deixar anotado que os cristãos "honestos" podem, ali, resguardar-se, e fugir da chuva crítica que sobre a igreja cai).

2. No entanto, meu post não está "denunciando" a hipocrisia e a fraude, a desonestidade e a impiedade que grassam nos "acampamentos do Senhor". Eu falo genericamente sobre um pathos religioso: justificar o "amor" - em Deus, amar o "outro" - como injunção da fé, cuidar do outro - como "missão". Segundo meu raciocinio, não é o "outro" em si, mas a "idéia" - não posso ir além disso, conquanto não possa afirmar que "Deus" não passe disso, entende? - "Deus". Minha crítica é pretensamente refinada - se consegui tal efeito: não há verdadeiro "amor", quando a pulsão é religiosa, porque não é o outro que me "tem cativo" (o amor é prisão!), mas uma "idéia" muito forte, densa, pesada, que me dá por "prova" de submissão o "cuidado" aos semelhantes. "Cuido" não por causa do semelhante, mas por causa da idéia. Se a idéia me mandar "descuidar", não refugo - "descuido". O mesmo pathos, a mesma idéia, o mesmo imperativo ao qual me entrego "cegamente" é responsavél pelo amor e pelo ódio religiosos, pelo abrigo e pela fogueira, pela vida e pela morte. Tolo do que cuida poder "controlar" essa idéia. Não, essa não se pode controlar, não.

3. Sob a capa do armor, do cuidado - até da retórica dos pobres - preserva-se um estado de heteronomia, de "escravidão" à idéia, coisa grave. Sua maior gravidade decorre do fato de que ele se revela, à superfície, como um "estado de graça", como um "serviço de amor". Sua real condição está oculta - a obediência a uma "idéia".

4. Assim, quero desviar da discussão "sistema religioso bom" versus "sistema religioso mau", próprio do pathos divino (por exemplo, o profeta, em nome de Deus, pôr o dedo na cara do sacerdote). Quero, antes, refletir sobre o sistema em si, independente de sua "ética" de endosso retórico. Não é possível, sob nenhuma circunstância, que uma consciência alienada promova desalienação - não é por outra razão que o mais longe onde nossa misericórdia consegue ir, nesse sentido, é na utilização do próprio discurso religioso na promoção da "libertação" - o qual opera, contudo, dentro do ritmo e do sistema da própria alinenação. Todavia, nem nos damos conta de que não há, aí, verdadeira libertação, porque os agentes operadores da libertação, sejam os gramscianos agentes da pastoral, sejam os sujeitos pobres objetos da retórica e da prática libertadora, mesmo quando autenticamente pulsional, movem-se à luz de uma idéia "de fora", de um imperativo que não provém deles mesmos, mas de uma projeção já desde um século e meio satisfatoriamente descrita. Devíamos, de algum modo, ter percebido, que a "libertação" de Rute é conquistada por Noemi e Rute. Mesters escreveu um livrinho lindo, quase o disse, mas, ao cabo, pôs tudo como materialização da "fé"... que pena.

5. Deixo para a prática o confronto entre os valores "verdadeiros" das práticas religiosas. Por exemplo, na mesma semana, a "Igreja" defendeu o MST, num gesto, em termos ético-políticos, louvável, e, ao mesmo tempo, mandou para o inferno uma menina, sua família e os médicos, num gesto ético-político cínico e canalha. Não quero entrar na "torcida", conquanto tenha escrito um post para cada situação, recusando-me, contudo, a entrar na retórica teológica para o fazer. O que quero é perguntar: é preciso apelar para Deus para decidir-se a questão da reforma agrária? É preciso apelar para Deus para decidir-se quanto ao aborto preventivo e legalmente de direito? Ou, apelar para Deus é, ainda, um sinal, um aviso, que nós mesmos (nos) damos!, de que a humanidade não tem valor em si mesmo, e aquilo que ela faz ou deixa de fazer não tem nem deve ter nela mesma a razão e o motivo, senão que o fundamento deve ser Deus?

6. Não estou pensando na "solução" ético-política da heteronomia religiosa - penso na sua definitiva superação epistemológica (sem a superação epistemológica da alienação humana, as soluções etico-políticas sofrerão sempre de disfunção cognitiva). E penso que, para tanto, nem é preciso dispensar-se a "idéia" Deus, mas ela tem de, definitivamente, deixar de ser o fundamento para a ação e o valor humanos - bastem à humanidade, ao homem e a mulher, congregados, planetários, de carne o osso, a própria humanidade e a natureza onde ela se produz e reproduz. Não vejo nada de necessariamente mal em Deus nos fazer companhia. Mas como amigo, apenas. Nada mais.


OSVALDO LUIZ RIBEIRO

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