segunda-feira, 8 de dezembro de 2008

(2008/97) Lula e Teologia - reflexão sobre um caso


1. Talvez haja algo de ilustrativo neste "caso", que passo a narrar. Não darei nomes, por se tratar de pessoa conhecida. Vamos ao "caso".

2. Recebo, volta e meia, e-mails de um pastor evangélico, conhecido meu, poliglota e tudo. São e-mails invariavelmente sobre a Bíblia Hebraica, alguns, até, muito pertinentes e interessantes, e alguns, sim, sim, interessante, não?, escritos em inglês!, malgrado o moço, bem, já é um senhor, eu diria, ser fluminense e residir em terras fluminenses.

3. É de "direita" o pastor. Há uma semana e meia, mandou-me um e-mail no qual a figura do Presidente da República, Luís Inácio Lula da Silva (em quem voto desde o Lula lá!), é deselegantemente enxovalhada, ao estilo comum da "direita" e de certa parcela da classe média-alta e classe alta, dita "culta" (cridas as pesquisas recentes, também ela começa a se render ao fascínio do carisma desse homem que foi, é e faz história). Elegantemente, respondi ao pastor, pedindo-lhe que não mandasse e-mail daquele tipo para mim, porque considerava deselegante. Silêncio.

4. Poucos dias depois, talvez três, outro, com nova "piada", na qual a condição e origem popular do Presidente da República eram, mais uma vez, axincalhadas, num deboche rasgado. Ratifiquei meu pedido anterior, de modo um pouco mais explícito. Dessa vez, uma resposta, concisa, afirmando que meu "critério crítico" seria respeitado. Havia, naturalmente, um ar de zombaria na resposta.

5. Não deu outra. Na semana passada, o Presidente da República, diante de uma platéia de "intelectuais" e "artistas", soltou o notório "sifu". No dia seguinte, o pastor mandou-me um e-mail, apontando-me a postura "repreeensível" do "meu" (ele frisou) Presidente, explicitando a razão - o "sifu". Dessa vez não fui muito educado na resposta. Quer dizer, até fui, mas disse o que devia dizer. Algo parecido pode ser lido no post do Mino Carta, que serve de inspiração para esse meu post.

6. Achei muito curiosa a reação de meu "missivista" telemático... A ética vai pro brejo, quando é para zombar, de modo inapropriado para um pastor evangélico, de resto, para qualquer um, da condição popular do Presidente da República, em atenção a quem, segundo ele diz crer, as Escrituras ordenam a oração e o respeito - quero dizer, às autoridades constituídas, o que soubemos fazer, e bem, de 64 em diante (não sei bem, todavia, se por ideologia ou por medo das baionetas). Diante de Lula, contudo, o escárnio... Por outro lado, quando Lula é pego usando, conscientemente, o "sifu", os "brios" - faz-me rir! - de meu interlocutor hebraísta vem à tona, e a santidade evangélica é razão para a crítica à prédica presidencial...

7. Inqualificável a atitude de meu nobre poliglota. Perde, assim, toda e qualquer condição de analisar, honestamente, a figura do Presidente. Seus critérios são comprometidos, parciais, literalmente "de gueto", de encomenda, teleguiados, válidos numa única mão. Lamentável. Quando ele olha para o Senhor Presidente da República, vê um não-ser... Que não goste de Lula, direito dele, como é o meu desgostar de FHC (de cujo direito faço pleno uso!), mas, daí, desrespeitar a figura simbólica do Presidente...

8. Pergunto-me se não há algo de característico nessa atitude, quero dizer, algo que seja comum à Teologia - que aplica aos outros o que não quer ver aplicado a si mesma, um vício ético de fundo, um vício civilizatório, uma condição imprestável para a Democracia e a República - o leitor deve saber que falo da Teologia que aí está, confessional e "revelada".

9. [Se o leitor considerar que passei rápido demais dos parágrafos 1-7 para o 8, recomendaria refletir sobre Hb 11,1: se ele é válido para todos, logo, deveria todo teólogo cristão admitir que tudo quanto todas as outras religiões e não-religiões dizem, por fé, de fato, existe, porque é a fé que determina a existência das coisas, bem como admitir que tais coisas existiriam rigorosamente da forma como as respectivas fés as apresentam, e nos termos em que elas as apresentam (a fé cristã, a midiática, mas também a "culta", até crê em exus, por exemplo, mas, para ela, são "encostos" e "demônios"): os duendes de Xuxa e o ET de Varginha, sem esquecer os Segredos de Fátima e todas as coisas do gênero... Agora, se acreditamos que só o que existe é o que apenas a nossa fé diz que existe, lá foi a regra áurea, evangélica, pro brejo: faze aos outros o que queres que se faça a ti - vale para mim, mas não para o outro, porque eu sou, o outro, não-é. Há anos, não era, ainda, batista, li Do Calvário ao Infinito, obra magnífica, dita psicografada, de Vítor Hugo - deve ser verdade, porque meu pai ma deu como sendo "verdade", porque ele cria. Então devia ser verdade. Ainda hoje, então. Meu Deus, entrar no MEC com esse tipo de critério!, e considerar que classificar isso pelo rótulo de "confessionalidade" é natural... Bem ensinou-nos, no entanto, Croatto, não o de 1984, mas o da Fenomenologia da Religião: o que há de verdade no mito não é o enredo, o argumento, mas a realidade histórico-social do horizonte de produção do mito nele projetado - levaremos isso a sério para nossos mitos, a fé?].

10. Quanto à figura do Presidente, sem juízo de outras questões, julgo-o de extrema inteligência política, acima da média, acima de esmagadora maioria da classe política brasileira. Tanto que, sem faculdade, sem "estudos", é capaz de fazer mais sucesso internacional, de ser mais ouvido, de fazer análise de conjuntura, de postar-se como negociador, do que FHC, com aquele chapelão de Coimbra e tudo. No fundo, há uma inveja absurda do homem nordestino e pobre, que ousou, que abuso!, posar de Presidente da República. Esquecem-se, contudo, de um detalhe simples - a democracia o pôs lá, como, antes, lá pusera Color e FHC, e, se os bons ventos democráticos continuarem soprando, também porá o próximo.


OSVALDO LUIZ RIBEIRO

6 comentários:

Felipe Fanuel disse...

Professor Osvaldo,

Achei perfeito este post. Tenho mais um motivo para admirá-lo ao conhecer sua preferência política... :)

Bom, apesar de considerar o § 9 uma provocação recorrente e necessária para a fé cristã diante da afluência de religiões orientais para o Ocidente, bem como da tradição democrática ocidental que respeita o pluralismo e a liberdade religiosa em meio à secularização e descristianização crescente, considero a aceitação e a tolerância pontos de partida para qualquer práxis relacionada ao encontro das religiões.

Se o magistério pastoral (líderes de igrejas) e o magistério acadêmico (teólogos e cientistas da religião) mantiverem o debate como está, os supostos encontros não passarão de confrontos institucionais no nível da intelectualidade.

Talvez seja interessante refletir sobre aquilo que Aloysius Pieris chamou de "terceiro magistério", que é o "magistério dos pobres". Trata-se de uma saída asiática para as ocidentais opções exclusivismo, inclusivismo e pluralismo.

Na Ásia, tal experiência tem significado o surgimento de uma Comunidade Humana de Base, que não é um grupo que se encontra para o diálogo inter-religioso, tampouco há qualquer preocupação com a identidade religiosa de alguém, mas a origem o desenvolvimento e a culminação de suas atividades é a libertação total das não-pessoas e dos não-povos. É dentro do processo desta prática contínua e libertadora que cada pessoa descobre a unicidade de sua religião. Afinal, de acordo com Pieris, a identidade religiosa é algo que outras pessoas de fé nos concedem. Como aconteceu com um marxista vindo de um ambiente budista, que não aceitava a idéia de Deus: “Se eu jamais tiver que acreditar em um Deus, este é o único em que vale acreditar”, confessou Sarath Mallika, que, nove meses depois, morreu como mártir pela mão de um extremista no Sri Lanka.

Quem sabe discutir fé seja um luxo diante de tantos problemas no mundo para resolver? Colocar os símbolos no canto e botar a mão no arado pode ser uma lição que temos para aprender com o Oriente, um dos lugares que possui as mais altas taxas de miséria do mundo.

Um fraterno abraço.

Peroratio disse...

Olá, Felipe.
Obrigado pelo elogio ao post.
Poderia esclarecer o signfiicado desse seu parágrafo?

"Se o magistério pastoral (líderes de igrejas) e o magistério acadêmico (teólogos e cientistas da religião) mantiverem o debate como está, os supostos encontros não passarão de confrontos institucionais no nível da intelectualidade."

Penso que ele se refira ao debate no registro discursivo que se dá em torno do tema, sem a preocupação concreta com a situação também concreta dos pobres. É isso?

Quanto ao Oriente, tenho muitas dúvidas sobre os ventos que vêm de lá acerca da questão religiosa. Aquilo é um mundo totalmente desconhecido pra mim, e a mídia não merece um segundo de crédito. Logo, não sei o que acontece por lá.

Deixemos você me esclarecer aquele ponto, e, então, desenvolvo meu raciocínio.

Um abraço fraterno,

Osvaldo.

Felipe Fanuel disse...

Desculpe-me, Professor. Tentarei esclarecer abaixo.

Como se sabe, as categorias "exclusivismo", "inclusivismo" e "pluralismo" foram formuladas em um contexto moderno de busca pela especificidade e unicidade de Cristo, na tentativa de redescobrir a identidade cristã. Este é o ponto comum entre elas. As lideranças religiosas e os teólogos trabalham ativamente aqui diante do desafio do encontro entre as religiões.

O problema é que, na prática, os encontros entre as religiões acabam significando uma disputa institucional. As pessoas pouco participam. Aliás, o/a fiel já provou saber conviver com as diferenças religiosas idiossincraticamente, haja vista o trânsito religioso, tão característico das principais regiões urbanas brasileiras.

Enxergo como válida a idéia de Pieris de se buscar um novo paradigma diferente daquelas categorias, com o objetivo de responder aos problemas sociais em primeiro lugar. É mudar o foco mesmo. Apesar de experimentada em uma realidade asiática, a Comunidade Humana de Base pode servir de referência neste, assim como a Teologia da Libertação Latino-americana o foi para que mulheres, gays, asiáticos, africanos e vários grupos minoritários no mundo inteiro pudessem clamar por libertação a partir do cristianismo.

É óbvio que evangelizar aqui é muito mais experimentar a solidariedade com não-cristãos/ãs, através de uma possível espiritualidade comum, como a prática das bem-aventuranças, que promover proselitismo. Além disso, Jesus é visto como aquele que reúne os injustiçados diante dos poderes que criam pobreza e opressão.

Sai um pouco dos termos teândricos para alcançar a possibilidade de um libertador nesta vida, aspiração tão comum entre os pobres, pois gritam ao céu por causa das suas necessidades diárias, bem concretas a propósito, e que não podem ser sanadas pelo dinheiro (Mamon) de que não dispõem.

Um abraço.

Peroratio disse...

Compreendi. Faltava essa referência cristológica àqueles termos.

Quanto à Comunidade Humana de Base, não a conheço - e se for um paralelo ao que na América Latina são a TdL e as Comunidades Eclesiais de Base, então seria um "ensaio", aisático, nesse caso.

Já reparou como estão aparecendo dicussões sobre o fim da Tdl? A EST publicou um artigo de Jung Mo Sung, e o Boff escreveu um. Isso significa alguma coisa, certamente...

Eu tenho escrito alguma coisa a respeito do DI, na ouviroevento. Sou críticp em relação à plafatorma opercional vigente, por questões filosófico-epistemológicas. Nesse sentido, consigo acompanhar parte do seu raciocícnio. De fato, há procedência nessa parte: o povo tá se lixando pras questões teóricas, próprias da intelectualidade (eu me insiro aí - o problema é quem muita gente inserida aí, dizendo-se nas "bases" - eu me rio...).

Eu me pergunto, contudo, se ainda podemos, no século XXI, pleitear uma plataforma de fundo teológico-religioso para o enfrentamento das questões sociais. Ainda é alienação programática, uso consciente do mito e, em última análise, manipulação de massa - de esquerda que seja.

Tenho meus receios. Seja como for, alguém tem que arriscar. Depender de mim, fico fazendo conta epistemológica, na inércia...

Nas suas orações, peça a Deus que o povo não dependa de mim...

Um abraço,

Osvaldo.

Felipe Fanuel disse...

Quanto à Comunidade Humana de Base, não a conheço - e se for um paralelo ao que na América Latina são a TdL e as Comunidades Eclesiais de Base, então seria um "ensaio", aisático, nesse caso.

Comunidade Humana de Base é diferente de Comunidade Eclesial de Base. Além da óbvia diferenciação destacada, que já é motivo para não considerar esta "ensaio" daquela, a Comunidade Humana de Base é composta por pessoas de quaisquer procedências religiosas ou não preocupadas com a libertação. Neste caso, o cristianismo acaba sendo avaliado por não-cristãos.

...

Eu me pergunto, contudo, se ainda podemos, no século XXI, pleitear uma plataforma de fundo teológico-religioso para o enfrentamento das questões sociais. Ainda é alienação programática, uso consciente do mito e, em última análise, manipulação de massa - de esquerda que seja.

Os problemas sociais sempre estiveram dentro das religiões. É claro que sem a devida importância, na maioria das vezes. Por que não refletir sobre os elementos teológicos que respondam a essas questões? Vai significar quebra, desconstrução e resconstrução simbólica desses elementos, com certeza.

Afinal, a desliteralização do símbolo é uma das possibilidades de sobreviver nas ambigüidades da religião institucional. Positivista é que não quero ser, pelo menos neste momento de minha vida, pois não acredito que a religião seja um mal primitivo a ser superado.

O problema é a posição de poder que todos nós ocupamos em algum nível, inclusive o mais pobre de todos os humanos. Precisamos ter consciência disso. Se for usada para oprimir, esta posição é opressora. Mas ela também pode ser usada para promover libertação e transformar uma realidade possivelmente opressora em libertadora.

Fica meu muito obrigado pelo agradável diálogo nesta escaldante tarde ensolarada de verão no subúrbio carioca.

Um abraço.

Peroratio disse...

Muito rápido, corrijo-me (ou à sua interpretação, nesse caso, tanto faz): "ensaio" não quis dizer a aplicação de uma na outra. Quis dizer criação artificial, tentativa programática, às apalpadelas, testagem - uma micro-sociedade dentro da sociedade maior, como quem deseja, quem sabe, implodir uma pela outra. Não fui "crítico".

Insisto, contudo, na crítica à pretensão de o "mito" ser libertador. Para mim, Felipe, esse é "o" ponto - como podem pessoas alienadas no mito, sem consciência de que estão inseridas em mito, serem liberdadas por esse mito que as tem presas? Sairão de uma prisão para outra... como quem tinha um diabo no corpo, e, agora, invade-a um anjo...

Bem, os libertadores são tão mitoplastas quanto os opressores, e, nesse caso, as massas apenas trocarão de pastores. Mas, se você perguntar àqueles que consideramos opressores se eles se consideram assim, dirão que não, e que estão trabalhando para o bem das pessoas - e podem até ser honestos nisso. Logo, teremos de admitir que somos melhores do que eles, e que nosso bem é melhor do que bem deles - mas quem deveria julgar isso não eram as massas? Mas como, se, sejam os nossos, sejam os deles, os mitos as cegam?

Marx estava certo - seja de direita, seja de esquerda, mito é alienação. E Freu estava certo - religião é, mesmo, uma neurose. Se são/podem ser mais do que isso, resta provarmos - e estamos fazendo a maior força possível para demonstrar o contrário!

Devolvo, pois, a pergunta: é possível libertação concreta de pessoas por meio do mito religioso?

Osvaldo.

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