1. Haroldo, colheram da própria fonte, de Benjamin, a confissão da razão de seu suicídio? De onde vem a interpretação de que teria sido por "desespero"? Aliás, de onde vem a razão para que seja tirado do "homem" (e da "mulher") o direito ao suicídio? O homem é o único animal que tem poder sobre a própria morte, e apenas uma teologia que roubou do homem sua própria auto-determinação, uma teologia de sacerdotes, uma teologia de Governo e Poder, de controle social, é que ainda demoniza ou transforma em "pecado" e "covardia" o suicídio. Não penso assim - penso que deveria ser concedido, socialmente, como direito reconhecido, o direito ao suicídio. Que, diga-se rápido, cada um tem - nós é que fingimos que não temos.
2. Além disso, não sei se a única explicação para o suicídio de Benjamin, salvo se ele a confessou a uma testemunha, seja o desespero. Pode ter sido a coragem. Pense em Massada! Foram covardes e desesperados? Ou, antes, preferiram dar cabo de si a serem trucidados pelos romanos? Morrer, judeu, pela mão de cães nazistas? Antes, por um ato de soberania sobre a vida, sobre o corpo... Não sei.
3. Nossa aproximação ao tema do suicídio ainda me parece contaminada por uma teologia mitológica que teima em considerar-se portadora de informações privilegiadas - "reveladas" - que, ao fim e ao cabo, têm, apenas, a função de controle de consciência. Diz-e, amiúde, que o povo gosta disso. Pergunto-me se o povo não foi levado a gostar disso. Quanto a mim, desgosto até o desconforto físico. Já não posso mais nem ouvir certas coisas, que a pele me empola. Não empola, Bel? Empola...
4. É, sim, bastante prudente conter a língua. Se a informação que você nos traz é verídica, o fato de Walter Benjamin nunca ter conseguido a vaga apenas expõe a verdadeira face daquele sistema: arena do conhecimento? Olimpo de vaidades... Mas não há de ser sempre assim. Penso que a ciência, a academia, além dos canalhas que em todo lugar há, a História da Igreja não me deixaria mentir quanto a isso!, está cheia de bons sujeitos, que sabem e saberão ser criticados naquilo que dizem e escrevem, quando a crítica é àquilo que dizem e escrevem. Se não souberem, bem, estão no lugar errado, e é a força da política que os mantém ali. Não sei se um Walter gostaria mesmo de sentar-se à mesma mesa...
5. Finalmente, uma crítica ao citado que você fez: "'Pois a tradição ordena o passado não apenas cronológica, mas antes de tudo sistematicamente, ao separar o positivo do negativo, o ortodoxo do herético, o que é obrigatório e relevante dentre a massa de opiniões de dados irrelevantes ou simplesmente interessantes'". Como assim, Haroldo, "a tradição ordena"? Penso que há um equívoco aí, uma disfunção sintático-subjetiva, igual à que Vattimo comete quando fala sobre a "Hermenêutica" como uma estrutura operativa. Nem a tradição ordena nada, nem a hermenêutica diz coisa alguma. Ou me esquivoco?
6. O que chamamos de tradição é o quê? Pense no Planeta - é o conjunto das informações, em sentido amplíssimo, disponíveis para o conjunto dos homens e das mulheres - hoje em dia vai-se criando uma tradição planetária, mas ela ainda está longe de emergir - com os quais eles vão-se construindo, recursivamente. Nessa perspectiva, algo parece uno. Mas não é - é falsa a percepção. O que há são tradições. Aproximemos o foco, como se pode fazer hoje no Google Earth. Reduzida a escala, surgem as tradições continentais. Reduzindo, as regionais. Reduzindo, as sub-regionais. Reduzindo, as locais. Reduzindo, as familiares. Reduzindo, as pessoais. Isso sob recorte geográfico, mas há outros: político-ideológicos, religiosos, econômicos... O que há é uma rede de informações disponíveis - não subjetivas -, imbricadas, umas sobre as outras, às vezes limítrofes, às vezes conflitantes. É no encontro ecológico com/em tais redes que pessoas ordenam tais informações.
7. Se a pessoa que ordena a informação tem poder social, ela constitui uma ordem - Tradição. Por outro lado, a autonomia nada mais é que, igualmente, ordenação de informações disponíveis na tradição. Nunca é a tradição que faz coisa alguma, mas são sempre pessoas que, utilizando-se da tradição, fazem as vezes de Deus e do Diabo. Não se trata de não dar nenhum papel às tradições - sem elas não há o "humano": mas é ter a clareza epistemológica de conceber que o humano, aí, não são as tradições, que são noológicas: "humano", aí, são as pessoas - e são elas que agem teleologicamente - claro, sempre, em face das tradições... Contudo, tradições não agem, não fazem nada. Fazem-se, por meio dos e nos homens e nas/das mulheres que as operam.
8. Não há destruidores de tradição - nunca houve, nunca haverá. O que há são destruidores de Tradição, críticos do Poder, desmancha-prazeres, serpentes surdas, "almas" em constante suspeita das intenções, críticas, pessoas cientes do "murmúrio" platônico-republicano da Cidade Bela (se cabe um citado: "não leio uma palavra sem ver logo o gesto que lhe pertence" [Nietzsche, O Anticristo, p. 86]). Também elas têm que escolher dentre positivo e negativo, tanto quanto o Poder faz sobrederminar às pessoas sua própria - do Poder - escolha.
9. Há muito que se sopesar. Digamos que outro estivesse na pele de Benjamin. Digamos que outro imaginasse seu destino na mão de nazistas - esse outro, ele, um Übermensch, na mão de nazistas?, nunca! Antes morrer... Nenhum animal da terra é capaz de fazer isso: elefantes, leões, focas, leões-marinhos, tigres, macacos, cães - metêmo-los em nossos circos, adestrâmo-los, e os fazemos saltar, salta macaco, salta, e ele, coitado, salta. A um espírito crítico, tentar fazê-lo saltar é a mais terrível das dores - é insuportável dor. Se lhe escapa o poder contra o domador, recorre ele, triunfante, à sua própria "übermenschicidade" - sobre mim, não!
10. Haveria, contudo, uma razão para outro não apelar para a mais distintiva das faculdades humanas - a manutenção de sua prole: mas até isso não será, digamos, genético, biológico, logo, não-distintivamente humano? Seja como for, abrir-se-ia mão da dignidade, da autonomia, para dar pão à prole. Mas, eis como a vida é um acúmulo de absurdos - sabendo a prole disso, com quantos grãos de areia não mastigarão o pão?, com quantas doses de losna não beberão a água?: com lágrima e dor passarão pela vida. E, todavia...
11. Nada é mais pacífico, mais sossegado, do que a ingenuidade, a inocência, a puerilidade. Perdi-a. Doravante, é apenas dor. Quisera haver mitos que a mitigassem. Não há. É viver dolorosamente. Mas, sobretudo, viver... talvez à espera de um mito novo, um mito que se disfarce tanto que perca sua cara de mito, conquanto continue, inexoravelmente, a sê-lo.
OSVALDO LUIZ RIBEIRO
2. Além disso, não sei se a única explicação para o suicídio de Benjamin, salvo se ele a confessou a uma testemunha, seja o desespero. Pode ter sido a coragem. Pense em Massada! Foram covardes e desesperados? Ou, antes, preferiram dar cabo de si a serem trucidados pelos romanos? Morrer, judeu, pela mão de cães nazistas? Antes, por um ato de soberania sobre a vida, sobre o corpo... Não sei.
3. Nossa aproximação ao tema do suicídio ainda me parece contaminada por uma teologia mitológica que teima em considerar-se portadora de informações privilegiadas - "reveladas" - que, ao fim e ao cabo, têm, apenas, a função de controle de consciência. Diz-e, amiúde, que o povo gosta disso. Pergunto-me se o povo não foi levado a gostar disso. Quanto a mim, desgosto até o desconforto físico. Já não posso mais nem ouvir certas coisas, que a pele me empola. Não empola, Bel? Empola...
4. É, sim, bastante prudente conter a língua. Se a informação que você nos traz é verídica, o fato de Walter Benjamin nunca ter conseguido a vaga apenas expõe a verdadeira face daquele sistema: arena do conhecimento? Olimpo de vaidades... Mas não há de ser sempre assim. Penso que a ciência, a academia, além dos canalhas que em todo lugar há, a História da Igreja não me deixaria mentir quanto a isso!, está cheia de bons sujeitos, que sabem e saberão ser criticados naquilo que dizem e escrevem, quando a crítica é àquilo que dizem e escrevem. Se não souberem, bem, estão no lugar errado, e é a força da política que os mantém ali. Não sei se um Walter gostaria mesmo de sentar-se à mesma mesa...
5. Finalmente, uma crítica ao citado que você fez: "'Pois a tradição ordena o passado não apenas cronológica, mas antes de tudo sistematicamente, ao separar o positivo do negativo, o ortodoxo do herético, o que é obrigatório e relevante dentre a massa de opiniões de dados irrelevantes ou simplesmente interessantes'". Como assim, Haroldo, "a tradição ordena"? Penso que há um equívoco aí, uma disfunção sintático-subjetiva, igual à que Vattimo comete quando fala sobre a "Hermenêutica" como uma estrutura operativa. Nem a tradição ordena nada, nem a hermenêutica diz coisa alguma. Ou me esquivoco?
6. O que chamamos de tradição é o quê? Pense no Planeta - é o conjunto das informações, em sentido amplíssimo, disponíveis para o conjunto dos homens e das mulheres - hoje em dia vai-se criando uma tradição planetária, mas ela ainda está longe de emergir - com os quais eles vão-se construindo, recursivamente. Nessa perspectiva, algo parece uno. Mas não é - é falsa a percepção. O que há são tradições. Aproximemos o foco, como se pode fazer hoje no Google Earth. Reduzida a escala, surgem as tradições continentais. Reduzindo, as regionais. Reduzindo, as sub-regionais. Reduzindo, as locais. Reduzindo, as familiares. Reduzindo, as pessoais. Isso sob recorte geográfico, mas há outros: político-ideológicos, religiosos, econômicos... O que há é uma rede de informações disponíveis - não subjetivas -, imbricadas, umas sobre as outras, às vezes limítrofes, às vezes conflitantes. É no encontro ecológico com/em tais redes que pessoas ordenam tais informações.
7. Se a pessoa que ordena a informação tem poder social, ela constitui uma ordem - Tradição. Por outro lado, a autonomia nada mais é que, igualmente, ordenação de informações disponíveis na tradição. Nunca é a tradição que faz coisa alguma, mas são sempre pessoas que, utilizando-se da tradição, fazem as vezes de Deus e do Diabo. Não se trata de não dar nenhum papel às tradições - sem elas não há o "humano": mas é ter a clareza epistemológica de conceber que o humano, aí, não são as tradições, que são noológicas: "humano", aí, são as pessoas - e são elas que agem teleologicamente - claro, sempre, em face das tradições... Contudo, tradições não agem, não fazem nada. Fazem-se, por meio dos e nos homens e nas/das mulheres que as operam.
8. Não há destruidores de tradição - nunca houve, nunca haverá. O que há são destruidores de Tradição, críticos do Poder, desmancha-prazeres, serpentes surdas, "almas" em constante suspeita das intenções, críticas, pessoas cientes do "murmúrio" platônico-republicano da Cidade Bela (se cabe um citado: "não leio uma palavra sem ver logo o gesto que lhe pertence" [Nietzsche, O Anticristo, p. 86]). Também elas têm que escolher dentre positivo e negativo, tanto quanto o Poder faz sobrederminar às pessoas sua própria - do Poder - escolha.
9. Há muito que se sopesar. Digamos que outro estivesse na pele de Benjamin. Digamos que outro imaginasse seu destino na mão de nazistas - esse outro, ele, um Übermensch, na mão de nazistas?, nunca! Antes morrer... Nenhum animal da terra é capaz de fazer isso: elefantes, leões, focas, leões-marinhos, tigres, macacos, cães - metêmo-los em nossos circos, adestrâmo-los, e os fazemos saltar, salta macaco, salta, e ele, coitado, salta. A um espírito crítico, tentar fazê-lo saltar é a mais terrível das dores - é insuportável dor. Se lhe escapa o poder contra o domador, recorre ele, triunfante, à sua própria "übermenschicidade" - sobre mim, não!
10. Haveria, contudo, uma razão para outro não apelar para a mais distintiva das faculdades humanas - a manutenção de sua prole: mas até isso não será, digamos, genético, biológico, logo, não-distintivamente humano? Seja como for, abrir-se-ia mão da dignidade, da autonomia, para dar pão à prole. Mas, eis como a vida é um acúmulo de absurdos - sabendo a prole disso, com quantos grãos de areia não mastigarão o pão?, com quantas doses de losna não beberão a água?: com lágrima e dor passarão pela vida. E, todavia...
11. Nada é mais pacífico, mais sossegado, do que a ingenuidade, a inocência, a puerilidade. Perdi-a. Doravante, é apenas dor. Quisera haver mitos que a mitigassem. Não há. É viver dolorosamente. Mas, sobretudo, viver... talvez à espera de um mito novo, um mito que se disfarce tanto que perca sua cara de mito, conquanto continue, inexoravelmente, a sê-lo.
OSVALDO LUIZ RIBEIRO
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