domingo, 14 de dezembro de 2008

(2008/102) Colecionador como destruidor da tradição


1. Li com interesse o livro Homens em tempos sombrios, de Hannah Arendt ([Cia das Letras, 1987] Cia de bolso, 2008). São textos dedicados a pensadores importantes do século XX. Escritos pela mão de uma pensadora da envergadura de Hannah Arendt, os traços biográficos e os esboços sobre o perfil do pensamento dos selecionados ganha em valor e profundidade.

2. Impressionou-me de forma especial o texto sobre Walter Benjamin (1892-1940). De origem judaica de classe média, na Alemanha, este pensador nunca conseguiu uma cátedra na universidade pelo fato de haver atacado o 'mestre' mais importante nos meios acadêmicos em Berlim antes conseguir a venia legendi por meio da Habilitation. Sua vida, porém, é exemplo do 'pensamento cru', que é o pensar em si e não sobre algo. Morreu de suicídio, em 1940, na divisa entre a França e a Espanha, num momento de desespero por não ter o passe de saída que a França negava a muitos refugiados judeu-alemães.

3. Desde cedo, Benjamin cultivou o hábito de colecionador. Colecionava várias coisas, mas especialmente livros; não só livros tematicamente afins, mas livros os mais díspares possíveis com relação a tema ou conteúdo. Havia outro hábito seu: colecionava citados! Em uma carta a um amigo se gabava de ter mais de 6 mil citados tomados das mais diversas leituras! E ele tinha uma teoria a respeito: “As citações em minhas obras são como assaltantes à beira da estrada que fazem um assalto armado e aliviam um ocioso de suas convicções” (p.209).


4. Benjamin, que também havia estudado teologia, tinha ainda outra teoria. Dizia que os citados são como uma “força transcendente” em meio ao fluxo do texto; são “fragmentos do pensamento”, cristalizados a partir da história que está em ruínas. Neste sentido, citados têm uma dimensão hierofânica; não da revelação de um deus da tradição, mas a manifestação de elementos norteadores da verdade que se cristalizou qual pérolas no fundo do mar à espera de um pescador de pérolas que um dia descerá até elas e as trará ao mundo dos vivos, não como simples idéias, mas como um fenômeno original.


5. Em seu hábito de colecionador, Benjamin aparentemente descobriu uma força destruidora da tradição. Sobre isso afirma Hannah Arendt: “Pois a tradição ordena o passado não apenas cronológica, mas antes de tudo sistematicamente, ao separar o positivo do negativo, o ortodoxo do herético, o que é obrigatório e relevante dentre a massa de opiniões de dados irrelevantes ou simplesmente interessantes. A paixão do colecionador, por outro lado, é não só assistemática, como beira o caótico, não tanto por ser uma paixão, mas por não ser basicamente inflamada pela qualidade do objeto – algo classificável -, e sim atiçada pela sua “autenticidade”, sua qualidade única, algo que desafia qualquer classificação sistemática (p.215).


6. Para Benjamin foi ficando claro que, enquanto a tradição discrimina, o colecionador nivela todas as diferenças. Nesse seu proceder reside um poder destruidor; a grande narrativa da tradição é rompida nos seus liames de força e poder; a história é penteada a contrapelo em busca de vivências, sofrimentos e experiências cristalizadas em fragmentos de textos.


7. O próprio Benjamin assim se expressou sobre esse seu hábito: “A verdadeira paixão muito mal compreendida do colecionador é sempre anárquica, destrutiva. Pois essa é sua dialética: combinar com a lealdade a um objeto, a artigos individuais, a coisas protegidas pelo seu cuidado, um obstinado protesto subversivo contra o típico, o classificável”.

HAROLDO REIMER

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