quinta-feira, 11 de dezembro de 2008

(2008/101) Mas qual é, então, a diferença?


1. O passado da humanidade, em certo sentido, tem a duração de dois piscares de olhos - acabamos de sair de entre as pernas da mãe... Já se escreveu muito sobre esse segundo no tempo, humano, em face do milênio da matéria, da História do Mundo. Internamente à nossa história, contudo, o tempo vai deixando atrás de si um rastro de limo...

2. Ainda ontem, não há mais do que duzentos anos mal contados, Platão dava as cartas - com o que quero dizer que a sociedade planetária movia-se por meio de uma cultura de ingênua credulidade, alcançada esta por meio da força e da coação, quando necessárias. Não é que nunca tenha havido críticas - claro que houve: até fogueiras!, mas o fato é que, como um todo, como "cultura", o Planeta todo era platônico. Meia dúzia de homens, eventualmente mulheres, muito, muito especiais, de roupas especiais, de gestos especiais, de modos de falar especiais, às vezs, até, com línguas de outros tempos, eram eles os videntes da "verdade", seus intermediadores, únicos, "credenciados", franquiados, e, por meio da credulidade geral, essas verdades constituíam-se em plataforma sólida, em base segura, sobre a qual aqueles mesmos homens, eventualmente mulheres, espciais erigiam catedrais e templos.

3. Há cera de trezentos/duzentos anos, alguma coisa entre a Inglaterra, a França e a Alemanha,com pitadas estadunidenses, algumas vezes em conjunto, outras, em conflito, inventou de levar a sério uma idéia curiosa - a da verificação crítica, a de que as coisas, para terem "valor", deveriam ser testadas, comprovadas. E mais - que qualquer um, universalmente, pudesse fazê-lo, você, ele, eu, ela. Uma amálgama de empirismo, romantismo, iluminismo - cientificismo - e de política (à sua moda e, de acordo com seus interesses) revolucionária, viraram a mesa. Aqueles homens, eventualmente mulheres, especiais, que continuassem lá a criar seus bichinhos de estimação, a engordar-lhes para o(s) Senhor(es), eventualmente Senhora(s), mas a sociedade, doravante, constituir-se-ia por meio de suas próprias determinações - e, quanto ao dicurso da verdade, ela deveria ser pública, crítica, comprovada, universal.

4. Ah, quanta resmungação, quanta birra, quanta pirraça. Não adiantou. Os Estados Republicanos (sempre por conta de seus próprios interesses, que aqui não vou apresentá-los como angelicais formas de liberdade... conquanto o sejam infinitiamente melhores do que o que se tinha antes) trataram de criar suas próprias regras, desde ética e legislação até teoria e "verdade(s)".

5. Assim, a nova regra, em tese, passa a ser um misto de aristotelismo/empirismo e romantismo. O que interessa nesse novo contexto é o acesso univeral aos critérios de verdade (uma característica aristotélica, disponível, portanto, há dois mil e quinhentos anos, mas "desinteressante" para os planos daqueles homens, eventualmente mulheres, especiais... Doravante, a sociedade não precisaria mais dar crédito às histórias daqueles homens, eventualmente mulheres, especiais. Estava em casa, sua casa, e construiria ela mesma, por meio da verificação crítica dos argumentos, sua plataforma operacional.

6. De repente, pipocam ataques extraordinariamente fortes e bem sucedidos contra a nova plataforma. A ciência é impiedosamente atacada. Quistionam-lhe os fundamentos, primeiro, transformando todo conhecimento em puro jogo de palavras. Depois, dinamitam-se seus fundamentos, afirmando que tudo é "racionalidade". Segue-se, afirmando que os conteúdos da ciência não passam de "palpites" (até o bom Rubem Alves o diz, em Filosifia da Ciência, para o que é preciso muito despeito para com o trabalho científico...).

7. Juntem-se, numa sala esses senhores: Wittgenstein, o dos acordos lingüísticos, Rorty, o do pragmatismo não-fundacional, Heidegger, o da Linguagem, Gadamer, o da Tradição, Vattimo, o de uma "Hermenêutica" que é a irmã-gêmea de Platão, conquanto disfarçadamente não-ontológica. Para o conjunto desses senhores, os discursos humanos são, todos, "inverificáveis". Para todos esses senhores, conhecimento humano não passa de jogo de palavras, arbitrariedade, idiossincrasia, fenômeno estrututal inconsciente, "masturbação" tradicional insuperável... A crítica, aquela que tentara salvaguardar-se do controle ideológico de homens especiais, ah, ela é pura bobagem: positivismo de gente, em termos clínicos, idiota...

8. Onde isso vai dar? A meu ver, isso faz dos séculos XVIII e XIX uma dobradiça - à esquerda, antes deles, os séculos desde Platão (depois de muito custo, algo como setecentos, oitocentos anos a contar de sua entrada no Ocidente, Aristóteles abalou as estruturas dessa Bela Cidade platônico-agostiniana), e, à direita, depois deles, esse esforço hercúleo, "transatlântico" de reduzir a criticabilidade, a fundacionalidade, os critérios de verificação, as chaves de consulta, a crítica!, a pó de traça. Ora, onde não há possibilidade de crítica e verificação dos discursos, o que resta? Enemuremos as alternativas: a anarquia cognoscitiva, o "endeusamento" sub-reptício da "tradição" (o que faz dela, Tradição), o retorno do controle do capital simbólico pelas hierarquias de homens especiais, também de mulheres especiais, o nivelamento dos discursos, o estupro da epistemologia, seu engravidamento de monstros falso-epistemológicos, o parto de dissonâncias cognitivas tomadas como "valor" da pluralidade...

9. Pluralidade é carnaval - literalmente: a supressão das regras ético-morais para o extravasamento lididinoso das energias carnais? Pluralidade é a ab-rogação de todos os critérios? É o império da banalização dos discursos? Pluralidade é a epistemologia da não-epistemologia? Ou a pluralidade já estava dada na origem da crítica dos séculos XVIII e XIX, justamente a luta pelo direito de todo e qualquer um ter acesso ao conhecimento? Ora, como vingança, um movimento reacionário destrói o conhecimento - operação magistral de guerra, estratégia soberba! Aos cidadãos do mundo compete voltarem, cada qual, ao controle simbólico-ideológico das símbolo-arquias metafóricas de plantão... Surpresa!: as mesmas à esquerda da dobradiça...

10. É estupefaciante como movimentos ditos progressistas, ditos revolucionários, ávidos pela vitória - sobre quem?, contra quem? - aceitam essa policatizinha pequena do século XX de dizimar a refutabilidade dos discursos, de desdenhar da crítica, de relativizar os discursos - hipocritamente, hipocritamente, porque, no escuro dos quartos, vomitam diante dos discursos que se vêem constrangidamente obrigados a aturar durante o dia, por conta de sua estrategiazinha de impedir a crítica ao próprio discurso pela razão de não haver críticas de discursos. Quando são religiosos, então, quando são pregadores, então, quer-se vê-los em sua verdadeira face?, flagrá-los em plena nudez?, que se vá ouvi-los em seus sermões - aí está o que, de fato, conta para eles... como, aí, essa história de equalização dos discursos revela-se hipocrisia. Meus Deus - não nos demos conta de que isso é patológico? Ou nos demos? Jesus! Então não há jeito...

11. Eu não me curvo ao "programa". Deconfio demais dele e de seus defensores. Prefiro, a contrapelo, seguir a corrente minoritária, a epistemológica, a das ciências cognitivas, a das ciências de modo geral, que, conquato estejam plenamente inteiradas da condição noológica de todo debruçamento sobre o real, não aceitam transformar em quimera descolada da matéria o trabalho crítico. O dia em que um desses senhores da estirpe contra-epistemológica do XX, e, na falta deles, quaisquer de seus seguidores, aceitar comer carne podre e beber cicuta, e comer pão e fezes, tanto faz entrar e sair, tudo é a mesma coisa, e, ato contínuo, disserem que isso é meramente arbitrariedade, que não mata nem faz mal, e que nem há diferenteça de gosto, afinal, gosto é uma ilusão sensorial, aí os levarei a sério. Enquanto isso, fico entre o riso e a perplexidade, porque não é inocentemente que se faz o que se faz, e por trás da supressão dos fundamentos, criticáveis, está a mais política das epistemologias - desde, claro, A República, que, para todos os fins, permanece hour concur.


OSVALDO LUIZ RIBEIRO

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