quinta-feira, 10 de outubro de 2013

(2013/1164) Que era vento, era - mas estava fazendo o que lá?


Em Gênesis 1,2, encontra-se descrita a cena que se podia flagrar no momento em que "os céus e a terra" começariam a ser "criados" - nos termos do escritor, "treva sobre as faces do abismo / e um vento tempestuoso (ou um vento de Deus) soprava sobre a face das águas". Não entrarei nos detalhes - é um vento, um vento tempestuoso, e agita as águas. Não, não acho que o escritor sagrado estivesse pensando em "espírito", mas em vento.

No verso 3, a criação começa: haja luz... A treva, do v. 2, se dissipa e, então, a divindade pode começar a criação. Mas, e o vento? O que foi feito dele? Mais - o que ele fazia lá?

Difícil dizer com precisão. Minha inclinação é apostar em uma função antagônica à criação - além de vento ( e não espírito), ruah não tem função criadora aí, mas destruidora, descriadora. Como a treva, também o vento precisa ser domado, controlado, para que a divindade possa, então, começar a criação...

A ideia, todavia, não está clara. Gênesis 1 cala-se sobre o vento. 

O vento, todavia, aparecerá em duas passagens, ambas relacionadas à criação. As duas passagens nos ajudariam enormemente a decidir - se, todavia, não piorassem a situação: o vento ocupa papel diversos em cada uma - numa, o vento é responsável indireto pela criação; na outra, é obstáculo a ser vencido...

Pr 30,4 é testemunho de que havia em Judá quem apostasse em um papel antagônico à criação por parte do vento. São quatro perguntas relacionadas à criação, na ordem de Gênesis 1, sendo que a segunda pergunta refere-se exatamente ao vento: "quem prendeu o vento com seu punho?". É uma referência a Gn 1,2, mas tomando a presença do vento lá como força contrária e obstáculo à criação. O criador da disputa cosmogônica de Pr 30,4 entende que a divindade, para criar, isto é, para fazer o que está nas outras perguntas (subir o céu e descer [não ao, mas o], amarrar o mar em seu manto e estabelecer os limites do orbe), a divindade teve de prender o vento, que, é a ideia, convulsionava as águas, impedindo a ação criadora. Entendo que é uma interpretação possível...

Jó 26,12-13, todavia, tem outra ideia. Também são quatro declarações - dessa vez, não perguntas - sobre a criação, em registro claramente mitológico. Nas quatro perguntas, aparece o Mar como personificado pelos monstros mitológicos da criação. A terceira declaração, corrompida já no texto hebraico, foi corrigida por Harold Cohen, na década de 70, em uma dissertação com pouco efeito internacional - ou nenhum. O Grupo de Iniciação Científica que coordeno, na Unida, está trabalhando essa correção de Cohen e vamos publicar um artigo Qualis em 2014, divulgando a necessidade de correção do texto Hebraico e, por extensão, as versões.

Sem entrar nos detalhes, onde se lê: "com seu vento varreu os céus", deve-se ler: "com seu vento, pôs o Mar em sua rede". A ideia de que o vento seja instrumento do deus criador não é nova. No mito babilônico, Marduk mata Tiamat com uma flecha de vento... Jó 7,12 faz referência ao mito babilônico: "sou acaso o Mar ou o Dragão, para que me cerques com guardas?". A proximidade do autor de Jó com as tradições babilônicas pode ter levado a assumir a função do vento sobre as águas à semelhança da arma do deus criador contra os monstros...

Ou seja: há duas versões distintas, na mesma "Bíblia", para a função do vento na criação - ele ora é razão da própria situação caótica, ora ele é descrito como agente de deus...

Não sei se vale a pena resolver o conflito. Todavia, talvez a chave seja entender o que significa a criação e o caos, nessas passagens. Criação, no AT, é, sempre, construção de cidades. Descriação é, também, a sua destruição. Em Jeremias 4, quando se vai descrever a destruição de Jerusalém pelos babilônicos (provavelmente), recorre-se, nos v. 23 em diante, às imagens de Gênesis 1,1-3 - são os mesmos termos, literalmente. E, não vamos mais nos surpreender - a vinda do exército babilônico destruidor é narrada na forma de um vento tempestuoso que sai do Norte e vem varrer a cidade... Da mesma forma como em Gênesis, a cidade é destruída, e um vento sopra sobre ela, tendo-a assolado, varrido e descriado... Quando Gênesis começa, o vento ainda está lá...

Mas por pouco tempo.

No horizonte, Ciro se levantara, liberta Israel e autorizara a reconstrução da criação, isto é, de Jerusalém...








OSVALDO LUIZ RIBEIRO

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