quarta-feira, 2 de outubro de 2013

(2013/1137) Sobre texto como obra que se recontextualiza - mais uma vez, acho que há fragilidades em Ricoeur


Todos que me conhecem sabem de minha profunda má vontade para com as abordagens ao texto enquanto obra - teses desenvolvidas principalmente por Ricoeur e Eco, na esteira de Heidegger (o segundo) e Gadamer. Tenho, sim, confessada má vontade - também pelo fato de que me parece que quem defende a tese não a leva muito a sério, porque cuida poder comunicar-se comigo por meio dela... Se a tese está certa, é impossível que o escritor possa querer, por meio da escrita, ele, escritor, convencer-me. Mas ele tenta... Com um lado da boca, ele diz - "a obra", e, com o outro lado, ele diz, eu, o escritor, estou te dizendo, mas você é lerdo demais para me entender...

Vejam esse trecho de Ricouer, trecho de seu clássico Interpretação e Ideologias - e me digam se eu estou vendo fantasmas ou se, de fato, Ricouer escorrega em seu próprio discurso:

"Todavia, o que é verdadeiro das condições psicológicas, também o é das condições sociológicas, embora o que possa liquidar o autor esteja menos pronto a fazer na ordem sociológica. No entanto, o que é próprio da obra de arte, da obra literária, da obra pura e simplesmente, consiste em transcender a suas próprias condições psicossociológicas de produção e em abrir-se, assim, a uma série ilimitada de leituras, que também se encontram situadas em contextos socioculturais sempre diferentes. Em suma, compete à obra se descontextualizar, tanto do ponto de vita sociológico quanto do psicológico, para poder recontextualizar-se de outra forma: eis o que constitui o ato de leitura. O resultado é que a mediação do texto não poderá ser tratada como uma extensão da situação dialógica. De fato, no diálogo, o vis-a-vis do discurso é dado de antemão pelo próprio colóquio. Com a escrita, transcende-se o destinatário original. Para além deste, a obra cria para si uma audiência virtualmente estendida a todo aquele que sabe ler" (p. 135-136).

Vejo dois problemas nesse parágrafo.

Primeiro, na mesma frase, Ricouer ora trata a obra como sujeito, ora, o leitor. Pinço a declaração: "compete à obra se descontextualizar, tanto do ponto de vita sociológico quanto do psicológico, para poder recontextualizar-se de outra forma: eis o que constitui o ato de leitura". No início, a obra é sujeito da descontextualização e da recontextualização. Mas, imediatamente, Ricouer reconhece que isso é o que conhecemos por leitura... Mas, senhores, leitura é o que? Nem a bora é o que é por si mesma nem hjá algo como uma coisa chamada leitura - o que há é o leitor que lê. Isso a que Ricoeur trata como leitura é o processo de o leitor recontextualizar a obra - e não o processo objetivo de a obra se fazer em outro contexto. Depois de matar o escritor, quer-se matar o leitor... Todavia, é ao leitor que teremos de recorrer, inescapavelmente, para falar de obra - é ele, e não ela, o responsável por qualquer atualização dela...

Segundo: Ricoeur distingue o processo de conversar cara a cara e o processo de ler. No diálogo, ele diz, o texto se dá à mediação - isto é, a fala pode ser desdobrada em processos de checagem ("foi isso que você disse?"). O destinatário da fala está ali, presente, para dar à fala, que se destina a ele, seu endereçamento situado. Isso, continua Ricoeur, desaparece no caso da leitura (que um sujeito faz de uma bora), já que o diálogo está desmontado e o destinatário original está transcendido, superado. Ora, o equívoco que me parece haver nessa distinção é desconsiderar-se que, enquanto José e João conversam, dialogam, Maria pode ouvi-los e tomar a fala de João por outra coisa que não a que José diz a João. Sempre haverá u'a Maria potencial para imiscuir-se no diálogo. Os leitores são Marias. José escreveu um recado a João, que o terá entendido, supomos, mas não vem ao caso, e nós, Marias, nos intrometemos no processo. Qual a diferença? Apenas uma: na fala, José está presente para responder. Na escrita, não. O restante, é irrelevante do ponto de vista do processo de falar ou de escrever...

Cuido, pois, que a desumanização da hermenêutica caminha passo a passo com a desumanização do processo de leitura - tenta-se, a todo custo, fazer desaparecerem autor/escritor e leitor/ouvinte do texto. Dois corpos sacrificados no altar do constrangimento de decidir entre arqueologia e arquitetura...







OSVALDO LUIZ RIBEIRO

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