quinta-feira, 22 de agosto de 2013

(2013/932) "Foram (mesmo) monolátricos os profetas?"

Foram (mesmo) monolátricos os profetas?
Cooptação da profecia como hipótese de trabalho  
Osvaldo Luiz Ribeiro
27 de abril de 2006

Resumo: o artigo defende a hipótese da não-tematização monolátrica do discurso profético. Os profetas “clássicos” teriam constituído um grupo característico de liderança social urbana e campesina, originados no contexto da urbanização do norte, em seu envolvimento mais próximo e especificamente econômico e militar com o Império, envolvidos com denúncias de caráter social. Relevantes enquanto contingente simbólico popular, sua memória será cooptada pelo Templo de Judá, durante a reconstrução nacional, sob a Pérsia, tornando-os defensores imbatíveis da monolatria exclusivista javista, tema preferido do sacerdócio jerosolimitano pós-exílico.

Palavras-chave: profetas – profetismo – sacerdotes – monolatria – cooptação.


Talvez seja cedo para o dizer. Mas pergunto-me: esperar para quê? pelo quê? Certamente, para que outro o diga, com o que me sentiria a um só tempo alegre e triste. Alegre, porque direi: não falei? Triste, porque direi: queria ter sido eu a tê-lo dito. Então o digo logo. Mas, a rigor, deveria esperar até que tivesse melhor assentado a massa. O cimento ainda está fresco, e será mais fácil derrubar o muro, agora, do que depois. Mas talvez também isso seja melhor – se é para ser destinado aos escombros, que o seja logo.

No que concerne à forma e ao modelo, não estou redigindo uma tese de doutorado. Contudo, depois de levantada a bibliografia sobre o assunto, e verificado seu grau de pertinência e originalidade, talvez a presente intuição possa seguir um caminho mais apurado.

Ideologia e fontes escritas no conjunto Josué - Reis  

Um olhar mais pausado sobre a série Josué – Juizes – Samuel – Reis parece trazer à luz um dado interessante: se imaginarmos um redator localizado, naturalmente, depois de Reis, talvez não fosse de todo um exagero pretender que, à medida que a redação se afasta deste, as narrativas vão se tornando menos “históricas”, e assumindo uma constituição mais perceptivelmente ficcional.

É como se, à medida que pretende descrever o período dos “reis”, o redator encontra “fontes” disponíveis, o que significaria dizer mesmo “textos” pré-existentes, mais do que simples registros tradicionais orais. Os próprios livros dos Reis fazem questão de mencionar as fontes, provenientes, nesse caso, da corte.

Estendendo as narrativas até Samuel, as fontes parecem ser menos volumosas, ainda que a estrutura narrativa surpreenda pela aparência histórica, levando alguns a apostar mesmo em testemunho ocular dos fatos. De qualquer forma, a concentração num período comparativamente tão curto, ou se justifica pela existência de “fontes” disponíveis, ou pela importância ideológica do período. Se a historiografia mais recente do Antigo Israel estiver correta, o período “clássico” Davi – Salomão foi reeditado, para configurar história comum dos “dois” Reinos – Norte (Israel) e Sul (Judá), de modo que é provável tanto a existência de alguma fonte, quanto a liberdade de configuração ideológica desse período da história.

Chegando ao período de responsabilidade de Juízes, o caráter ideológico das narrativas salta aos olhos. Não que apontamentos ideológicos não estivessem presentes em Samuel e, principalmente, em Reis. Mas , como venho de propor, ali, tais apontamentos ideológicos vêm entremeados naquilo que pode constituir fonte escrita, isto é, de alguma forma, memória registrada, com a qual a redação do conjunto deve lidar. No caso de Juízes, pode até ser que haja, como se pretende de Jz 5, por exemplo, fontes escritas pré-existentes à redação do conjunto, mas é mais difícil. O conjunto de Juízes é mais fácil de ser tomado, historiograficamente, como ficção histórica do que Samuel e Reis.

Finalmente, Josué pode ser considerado como “uma narrativa fictícia da conquista”, como a introdução de Herbert Niehr o considera (ZENGER, p. 175), a partir de cuja afirmação cheguei eu mesmo (por que não?) a propor que haja uma identificação político-ideológica entre o Josué, personagem do livro homônimo, e Josué, sumo sacerdote do Segundo Templo (RIBEIRO, 2006).

A partir do que foi dito, pode-se presumir que haja uma dependência maior do redator do conjunto Josué – Reis de fontes escritas para o que concerne à porção mais recente da história: Reis e Samuel, nessa ordem, e maior em relação a Reis do que em relação a Samuel; e, por outro lado, uma dependência menor, e mesmo inexistência absoluta de fontes quanto ao período mais distante, Josué, por exemplo. A narrativa de Reis seria histórica, então, enquanto a de Josué seria ideológica? Não, absolutamente. Todo o conjunto Josué – Reis é absolutamente ideológico. Não é historiografia como a consideraríamos para um trabalho acadêmico contemporâneo: é ideologia vertida em narrativa – ideologia instrumental. Ocorre, contudo, que, quanto mais o período esteja próximo da redação, tal ideologia deve lidar com fontes escritas, de modo que a ideologia que se encarna na redação desse trecho do conjunto deve lidar com as fontes escritas, e deve constituir-se a partir de e malgrado elas. Deve-se espremer nas costuras, entranhar na massa. À medida, contudo, que as fontes escritas desaparecem, sobrevivendo, se tanto, apenas memória secular tradicional, a ideologia torna-se, ela mesma, a narrativa, de modo que todo o presente se transporta para lá e então, instala-se nas personagens, dirige-as, faz com que falem, faz com que ajam, e não há mais discernimento entre história e ideologia, apenas ideologia narrativa: “narrativa fictícia da conquista”.

O quadro correspondente seria o seguinte:

Josué
Juízes
Samuel
Reis
Redator Js-Re
ideologia
Ideologia
+
prováveis fontes escritas
Ideologia
+
 fontes escritasmais restritas
Ideologia
+
 abundantes fontes escritas


Considero necessário deixar clara minha opinião de que, sendo correta a percepção acima, não seria adequado perceber que a ideologia redacional encontra-se mais plenamente presente em Josué do que em Reis. Nem de longe! A presença das fontes escritas mais abundantes em Reis, e, vá lá, ausentes em Josué, não deve levar à afirmação de que, então, a história esteja mais viva lá do que cá. A redação ideológica não se curva diante das fontes escritas: ela as utiliza a seu favor, haja o que houver. Os discursos são todos convenientemente engendrados, e de tal sorte que, na eventualidade de uma fonte escrita, digamos, inconvenientemente anti-ideológica, não há a necessidade (que talvez sentíssemos hoje) de ser descartada. Basta que seja situada ideologicamente dentro do discurso redacional, e pronto. Isso explicaria a sobrevivência, dentro do conjunto elaborado, de peças constrangedoras para a ideologia redacional: não são mais constrangedoras dentro do conjunto, e dada a forma como a narrativa vai ser apresentada nas leituras públicas, outro instrumento da ideologia redacional (a redação constitui apenas um momento da ação ideológica vista em sua totalidade). Essa estratégia termina por ajudar – e quanto! – o exegeta e o historiador na tarefa, nem sempre fácil, de proporem reconstruções da montagem das narrativas. É que, descartada a força ideológica presente no conjunto narrativo, os elos, responsáveis pelas costuras, se fragilizam; a força ideológica se dissolve; e a independência, ou mesmo a proposição anti-ideológica da peça originária pode ser percebida, como um galho ressaltado num caminho tomado, antes, como plano e seguro para a caminhada, mas no qual, agora, corre-se o risco de tropeçar.

Presença dos profetas no conjunto Josué – Reis  

Uma leitura não desconstrucionista dessas narrativas permite extrair delas a informação de que os “profetas” são os herdeiros fiéis da tradição de Moisés/Josué. Não gostaria de aqui ser obrigado a trazer à discussão o problema do recorte do Deuteronômio: há na pesquisa uma discussão não terminada sobre a relação original desse livro ou com o conjunto Gênesis – Números, ou com o conjunto Josué – Reis. Deixando de lado essa discussão técnica, posso deixar de fora um importante argumento a favor de minha tese aqui defendida. Mas tanto melhor, porque, na eventualidade de alguém desejar dar continuidade às intuições que aqui esboço, o recurso ao Deuteronômio apenas aumentaria a força dos argumentos. Seja como for, se Deuteronômio deve estar no início do conjunto Josué – Reis, fica ainda mais evidente que Moisés/Josué se pretendem preservados na “profecia”.

Mas que se deixe o Deuteronômio no seu limbo redacional. Baste o conjunto Josué – Reis. Mas que se dê um passo adiante. Esse conjunto (sem o Deuteronômio), constitui o que se considera a primeira metade dos Nebi’im (Profetas), a segunda parte da divisão em três da Bíblia Hebraica. Os Nebi’im são constituídos pelos Profetas Anteriores (Josué – Reis) e Profetas Posteriores (Isaías – Jeremias – Ezequiel – Os 12).

É importante colocar as duas séries diante dos olhos. Tomada a sua presença na estrutura dos Nebi’im, os livros apresentam-se na seguinte ordem:

Profetas Anteriores
Profetas Posteriores
Josué
Juízes
Samuel
Reis
Isaías
Jeremias
Ezequiel
Os 12


Tomadas as narrativas em suas pretensões, o quadro é o seguinte:

Josué
Juízes
Samuel
Reis



Isaías
Jeremias
Ezequiel



Os 12


É notável que os Profetas Posteriores, começando por AmósOséiasMiquéias e Isaías, estejam colocados no momento mais significativo da história: o início do “reino unificado” – sob Judá. Claro, Amós e Oséias estariam situados “antes” disso. Seu papel no conjunto, contudo, é portar-se como portal para a entrada triunfal de Ezequias e da sua reforma, conforme se pode depreender da leitura de 2 Re 18-19.

Judá é a herdeira de Davi e Salomão (a rigor, mais de Davi do que de Salomão), que se comportam, assim, como um eixo entre Moisés/Josué, de um lado (Josué), e os “profetas”, de outro. Josué introduz a “proposta” ideológica; Davi a consubstancia num projeto tópico (cúltico-litúrgico); os “profetas” lutam pela sua preservação e purificação. A rigor, é no momento redacional que tudo isso efetivamente se consolida na forma do programa hegemônico da golah persa – uma Judá javista, exclusivamente javista; hierocrática (já que “Davi” não poderá [mais] despertar do seu sono/sonho dinástico, dado o evaporamento de Zorobabel), masculinamente hierocrática (exclusivamente masculinamente hierocrática); tópica, topicamente jerosolimitana, religiosamente jerosolimitana; anicônica, surpreendentemente anicônica...

Isso, contudo, é o que uma leitura desconstrucionista pode apresentar. Não a leitura pacífica e passiva da própria narrativa, cuja intenção é dizer, de dois modos, a mesma coisa. Se vejo bem, a primeira parte dos Nebi’im descreve as coisas como a ideologia redacional as vê e diz ter acontecido. O enredo e a moral da história são sobejamente conhecidos: “Israel” afastou-se da aliança e da Lei, desviou-se, em seu caminho, dos caminhos de Yahweh, que, tomado de justa ira, fez o que fez, primeiro com o Norte, como que, assim, dando um aviso muito sério ao Sul; e, depois, olvidado o aviso – não sem as admoestações dos profetas! – com o próprio Sul.

Josué apresenta a proposta: aliança e Lei. Juízes, a perversão, combatida pelos precursores dos profetas, os juízes, heróis da fé – no que aqui concerne, da ideologia. Samuel prepara o caminho, aos trancos e barrancos, para o monarca segundo o coração de Yahweh, Davi, cujo filho, contudo, põe tudo a perder: nova perversão. Os reis sucedem-se numa interminável série de perversões, diante do que os profetas, ei-los, surgem como que a última voz, a derradeira – e inútil – da defesa da fé monolátrica. A ira de Yahweh põe fim a tudo. A esperança, esse pavio frágil, fumega ali, na figura triste de um rei sentando à mesa...

Essa desgraça, cujo pavio fumegante da esperança de restauração tanto quer esquecer quanto lembrar, dá-se por conta de questões muito presentes nas costuras ideológicas dos Profetas Anteriores: “Israel” abandona Yahweh, e serve a outros deuses e deusas; desobedece a ordem expressa (Deuteronômio?) de cultuar Yahweh em Jerusalém; entrega-se a práticas litúrgicas tanto obscenas quanto pervertidas. Imperdoável. Isso é o que dizem os Profetas Anteriores...

E, para que não pairem dúvidas, também o dirão, e agora não em “costuras”, não na parte destinada à “moral” da história, mas em cada palavra, para isso “vieram”, os próprios profetas. Na sua porção posterior, os Nebi’im pretendem deixar claro que os profetas insistentemente defenderam o que os próprios redatores dos Nebi’im agora defendem. Em cada intervenção polêmica, contra os reis, sim, mas contra o povo, também, contra todos, é melhor que se saiba, os profetas defenderam a adoração exclusiva a Yahweh, ao mesmo tempo em que condenavam às raias da pena de morte, com ódio implacável, qualquer desvio em direção aos outros deuses, verdadeiro adultério de um povo chamado às núpcias com seu deus. Pregaram ainda os caminhos de Yahweh, caminhos esses que, abandonados, levaram à desgraça – tanto no norte e do Norte, quando no sul e do Sul.

Dessa forma, os Nebi’im se apresentam, com suas duas partes constitutivas, como uma janela através da qual se pode “contemplar o passado”. O vão deixado aberto pelas duas bandas é a “história” – digamos, os “fatos”, as coisas como elas realmente se deram. Quem olhar pela janela, tem diante de si, pronta, a leitura desses fatos. Essa leitura está registrada na parte redacional, os Profetas Anteriores, que não apenas dão as coisas como a ideologia redacional pretende que sejam tomadas, mas dão, ao mesmo tempo, as justas causas, sempre de acordo com a ideologia redacional, pelas quais as coisas se deram como se quer sejam tomadas como se tendo dado. Na outra banda, os observadores podem ouvir, de viva voz, a própria ideologia sendo pregada lá e então, mas, então, pelos profetas. Isso que aqui vai, redigido, essa ideologia, essa proposta que aqui e agora se faz, lá e então já estava e já era feita. Seus campeões? Os profetas.

Numa palavra: a golah, de alguma maneira responsável pelo conjunto Josué – Os 12 (seja na forma do contemporâneo assim considerado “acordo” entre sacerdotes e “deuteronomistas”, seja na forma de elaboradora e instauradora do programa hegemônico da Judá pós-exílica) quer fazer-nos crer que seu discurso já estava lá. Pretende que a tomemos como “herdeira” dos profetas? Pode ser: a golah quer fazer-nos crer constituir-se como herdeira dos profetas, que, por sua vez, foram herdeiros de Moisés/Josué, depois de uma estação ali na terra dos juízes.

Isso é o que querem que creiamos. Não é de outra forma que leio (ainda que se possa ler de outra forma) a história da consulta à “profetisa Hulda” (2 Re 22,14-20). Encontrado o Livro da Lei no tempo e no Templo de Josias (dá-se a data de 621 a .C. para a “descoberta” desse que tem sido considerado como um [no mínimo] protótipo doDeuteronômio), pretendendo-se levar a termo uma “reforma” religiosa, lá se vão os oficiais do rei a consultar Hulda. Quem é Hulda? Diz-se “profetisa”, e, claro, enquanto “profetisa”, liderança feminina, com proeminência sobre grupos sociais específicos – com certeza relevantes para o sistema responsável pela redação desse Reis. Consultada, que diz a narrativa ser a opinião de Hulda? Rigorosamente tudo quanto esses oficiais gostariam de ouvir. Hulda endossa a “reforma”. E ela vai acontecer. E, é o que interessa no fundo, se alguém reclamar, que dizer? Que o que é que se quer? Afinal, não foi a “profecia” quem “deixou”? Mais do que isso, que “ansiava” por isso?

Para mim, essa Hulda aí, tendo existido, não é mais a Hulda que existiu. Que a narrativa tenha de recorrer a uma mulher, e a uma profetisa, que em Nm 12 vai ser tratada até o ponto da lepra, penso deva ser compreendido como consistindo um recurso de cooptação de memória. Não se pode desviar de Hulda – então, que ela pelo menos diga o que deve dizer, ou seja, o que a “reforma” precisa ouvir, porque, de qualquer forma, ela não está mais “aqui” para negar seu testemunho (diria que se trata do mesmo caso da memória de João, o batista, nos capítulos iniciais deJoão, o Evangelho – João é um obstáculo que de nada adianta olvidar: melhor cooptá-lo. E nisso João é extraordinariamente eficiente).

Hulda representa um caso concreto de cooptação, quem sabe, de uma memória concreta, de uma personagem e de uma personalidade concreta. É muito útil à narrativa – tanto que Crônicas manterá o episódio, utilíssimo. Por que “útil”? Por que faz uma mulher e profetisa, a meu ver, pedra no sapato do discurso masculino e hierocrático do Templo, confessar que a reforma é tudo quanto Yahweh quer. Para ser claro ao extremo: penso que, quando a narrativa está sendo composta, a golah tem, diante de si, uma classe de recalcitrantes resmungadores, gente de “dura cerviz”, que não se emenda, que não se submete, e que se agarra à memória de seus próprios heróis e heroínas. O remédio, se não para essa geração de pervertidos, mas para as gerações seguintes, é reconstruir a memória desses heróis e dessas heroínas, não os fazendo desaparecer, coisa pouco inteligente, e nada eficiente (tentaram isso com Asherah, e eis Maria, e, agora, Madalena), mas tornando-os porta-vozes primordiais da voz que, aqui e agora, por meio das narrativas que dão conta da vida desses heróis e heroínas primordiais, fala.

Noutros momento e lugar dever-se-ia atentar para a estrutura de 2 Re 18-19, onde vão, encenadas, naturalmente sob a direção segura da ideologia redacional, a voz da ideologia – reforma! – e a voz recalcitrante da população invadida em seu espaço privado – reforma não! Um sensacional caso de como o “acaso” histórico pode definir o curso da história programática. O que não faria a menor diferença, porque a ideologia vencedora vence não à mercê de acasos: vence até por meio deles, mas, se eles faltam, como parece ser o caso da profecia, ela os produz, nem que seja à custa de uma "falsificação" do passado.

É o que penso do que se diz da profecia nos termos em que se diz, e lá onde se diz. Cooptação!

Cooptação dos profetas na ideologia redacional do conjunto Josué – Os 12  

A desculpa de que me servirei aqui para não apresentar um esquema completo que fundamente o que apresento como intuição é o fato de que registro muito prematuramente essa intuição (ainda que ela tenha lá seus dois anos de idade, já). Não escrevo para a “academia”, a fim de que seja convencida de que, eventualmente, eu esteja certo. Fosse essa minha intenção, esse ensaio deveria se transformar numa Tese de Doutorado, com todas as suas implicações – inclusive o risco de não poder ser apresentada à banca, por força de sua controvertida (e presumida, mas não certa) originalidade: pesada demais para aquele ambiente...

Escrevo, então, para que, daqui a alguns anos, defendida a hipótese que aqui vai, mas então ainda que por outro mais preparado, possa eu dizer para mim mesmo, e para meus eventuais leitores: não disse? É, pois, ainda, intuição.

E digo dela o seguinte: para mim, os profetas jamais estiveram envolvidos com polêmicas monolátricas com o povo israelita/judaíta/canaanita (a tese atual é de que israelitas/judeus e canaanitas/cananeus são uma e a mesma gente, apenas vistos sob óticas diferentes. A tese de Gottwald já indicava isso, mas não tão explicitamente quanto Israel Finkelstein pretende seja ouvida). Para mim, os profetas eram ativistas políticos, até onde um personagem próximo oriental do corredor siro-palestinense pode ser tomado a partir do modelo mais recente de um “ativista político”. Eu diria que seriam mais para ancestrais dos zelotes e dos sicários do que dos Macabeus, se me entendem... Mais preocupados com questões relacionados à justiça e liberdade sociais do que pureza étnica ou cultural-religiosa.

Não vejo os profetas como histéricos pregadores da Lei e do Caminho. Histéricos, vá lá, que bem o eram – como todos os “profetas” o são, por vocação, e, por isso mesmo, sempre “perigosos”. Mas não “religiosos” no sentido de uma histeria concentrada em prédicas e imprecações de caráter cúltico-litúrgico. Botavam a boca no trombone é contra o que consideravam injustiça social (o que podia, eventualmente, envolver conteúdos incontornavelmente religiosos). As vozes, agora várias, que representam as imprecações contra a “imoralidade conjugal do povo”, e como se gosta de ver “Oséias” como o campeão nisso, para o bem (os comentários tradicionais), ou para o mal (os comentários feministas), tais vozes, é o que digo, não são “proféticas” – são sacerdotais. Foram escritas, é o que digo, para serem colocadas na boca dos profetas, mas jamais teriam sido pronunciadas por eles (ressalvada a possibilidade de as categorias de profetas cultuais envolverem-se na defesa do “culto”. Mas esses profetas cultuais não estão sob a minha mira aqui). O que se quer, colocando tais imprecações cúltico-puritanas na boca dos profetas – isto é, da categoria de profetas “independentes” do sistema político-religioso –, é transformar a memória deles em instrumento de legitimação das reformas sacerdotais. Se a reforma é monolátrica, os profetas devem ser transformados em defensores intransigentes da monolatria. Se a reforma é anicônica, os profetas devem ser transformados em iconoclastas sangrentos. Se a reforma é masculina, os profetas devem ser, todos, masculinos, e, se sobra alguma memória incontornável, olha lá Hulda, seja ela, então, o símbolo concreto não do discurso, mas da aprovação inspirada e legítima da legítima e inspirada reforma que, dado disso tanto falarem os profetas, um grande rei decide-se por instalar. E, se ele não teve tempo para tanto, deixa com a gente que a gente faz...

É difícil “provar” isso. Também é difícil “provar” que a menstruação não é imundície coisa nenhuma. Contudo, é o que disseram, da menstruação, os mesmos que disseram o que disseram dos profetas. Trata-se da mesma coisa – instrumentalização do que estiver disponível para, por todos os meios, ganhar a todos... Ainda não se venceu de todo essa estratégia eficiente e eficaz que o Templo engendrou para, eficiente e eficazmente, enxotar as mulheres do sacerdócio e da profecia. Metade da massa que se diz herdeira dessa história ainda olha para aquele sangue com os olhos emprestados de homens do século VI antes de Cristo. Não “os homens” de lá, que não se trata, em absoluto, eu penso, de uma espécie de “guerra dos sexos”, mas aqueles homens “religiosos” que, querendo o poder efetivo – o poder político e militar os persas lhes entregaram “de bandeja”, mas as consciências é mais difícil de serem conquistadas – tiveram de concentrá-lo, disputando-o com liderança feminina de forte representação popular. E, convenhamos, a Natureza deu uma mãozinha, fazendo com que sangrassem as mulheres...

É difícil provar que os profetas não tenham sido fundamentalistas religiosos, ainda que, estou disposto a crer, possam ter sido fundamentalistas políticos. Também é difícil provar que Yahweh e Asherah tenham sido consortes. Dei lá minha contribuição à tese (RIBEIRO, 2002), mas é assunto controvertido. Que os israelitas/canaanitas adoravam a deusa parece der difícil refutar, porque, a menos que minta, Othmar Keel nos dá conta de que centenas de imagens de deusas, de grandes seios e largos quadris, representação iconográfica das virtudes da fertilidade feminina, são desenterradas das casas dos camponeses daquele tempo, e isso mesmo a poucos anos de distância do momento em que o conjunto Josué – Os 12 é escrito (eu arriscaria dizer, mesmo “durante”). A presença da deusa é tão evidente na cultura material do Israel Antigo, e tão escassa – mas visível! – nos textos da Bíblia Hebraica, que Croatto chegou a falar de erasio memoriae, ou seja: apagamento dos vestígios da memória dela... O que torna difícil a prova... e constrangidos, convenhamos, nós, obrigados a recorrer quase a uma espécie de argumento ab silentio.

É difícil provar que os profetas não estavam em lutas com Baal, Asherah, Nehushtan. Que, quem sabe?, até participavam dos cultos comunitários. Não é necessário que tenhamos cada israelita na conta de um adorador de um monte de deuses. É possível que cada qual servisse a um ou dois, não necessariamente os mesmo que seus vizinhos serviam, de modo que Jacó podia adorar Yahweh e Asherah, com uma queda para esta, sina dos camponeses, enquanto Samuel, Nehushtan, afinal ele é um ferreiro, e, Benjamin, somente Yahweh, guerreiro que é. O que pretendo investigar, até o dia em que a moeda definir cara ou coroa, é se eram mesmo isso que pinta(ra)m deles: intransigentes fundamentalistas da monolatria.

Minha hipótese de trabalho é desconstrucionista e revisionista: não, os profetas não eram intransigentes fundamentalistas da monolatria. Teria sido o Templo, depois de sua reconstrução pelos persas, e de acordo com um projeto político-ideológico monocromático, monolátrico e masculino, que os teria pintado nesse tom de roxo-caixão. Diante da pergunta: e por que os sacerdotes teriam feito isso? Eu responderia, provisoriamente: 1) primeiro, porque a memória dos profetas estava lá. É perceptível como eles, os profetas, estão instalados justamente na porção para a qual, segundo a teoria que aqui defendo, mais havia “fontes escritas”. A estratégia redacional é lidar com essa memória, cooptando-a. Essa presença profética é como um galho na estrada. O galho está lá. Fazer o quê? Jogar ele para o lado, como se não estivesse lá? Ou, melhor, pegar o galho, empregar força nas duas extremidades dele, fazer com que vergue, amarrar-lhe a corda de um lado a outro, fazer dele, assim, um arco e, com ele, justamente com ele, disparar as flechas para o que se veio para essa estrada? Os profetas são um arco através do qual os sacerdotes lançam suas flechas desde o Templo de Jerusalém.

2) Segundo, porque, apesar de estarem lá, sua mensagem não era algo que legitimasse o projeto hegemônico da Judá hierocrática. Por isso, devem comportar-se como arco, que, sozinho, nada faz. As flechas, contudo, devem ser aquelas confeccionadas, afiadas e disparadas pelo Templo – que é, afinal, quem elabora (planeja o programa = confecciona as flechas), redige (coopta a memória dos profetas = transforma a memória dos profetas em arco) e lê publicamente (instala o programa = dispara as flechas) as narrativas.

E não teria havia confronto? Naturalmente. Há razoável número de textos na Bíblia Hebraica que podem ser lidos na forma de memórias de resistência ao projeto hegemônico do Templo, e que sobreviveram por meio de mecanismos que precisam ser investigados mais seriamente, em lugar de saltarmos, cansados, para teorias de leitura canônica da Bíblia Hebraica. Mal começamos o trabalho sério e já vão lá trabalhadores cansados, querendo desfrutar da paisagem – ainda há muita pedra a ser levantada, ó minha gente!

Não falemos dos textos propriamente, daqueles que podem ser lidos na qualidade de memória dos confrontos. Mas sejam trazidos aqui “fatos” muito instigantes, que parecem constituir sons dissonantes nessa sinfonia orquestrada. Em consonância com a declaração programática de Malaquias, de que “o sacerdote é o mensageiro de Yahweh” (Ml 2,7), a profecia praticamente “desaparece” depois da reconstrução do Templo de Jerusalém. A julgar pelo que vai em Zc 13,1ss, melhor seria dizer que a profecia é convencida a desaparecer... Isso é bastante interessante, porque, se os profetas foram os herdeiros de Moisés/Josué, e se foram eles a passar o bastão para Josué, o sumo sacerdote de Jerusalém, porque precisam, agora, de aposentadoria... precoce... forçada?

Há já uma diminuição da audácia e da intrepidez proféticas em um texto como Dt 18,9-22, porque faz do profeta um boneco de ventríloquo da Lei. Há já uma polêmica aberta, escandalosa, entre o Templo e a profecia em Nm 12, terminando a profecia leprosa, e, se curada, recebida no arraial sob as condições dedutíveis da moral da história – melhor um cão vivo... No centro dessa polêmica, Ml 2,7, que melhor seria entendido: “porque o sacerdote é (agora) o mensageiro de Yahweh”. E, como é natural, as pessoas são mesmo umas cabeças-duras, nem sempre é fácil fazer com que cada qual se mantenha no seu devido lugar, de modo que é compreensível que Zc 13,1ss dê ordens até a pai e mãe a matarem, dentre seus filhos, eventuais profetas desse tipo, caso não os convença a meterem-se com arados e ancinhos.

A profecia vai desaparecer. Os profetas são pintados repetindo o discurso do Templo, concordando com as reformas. Depois, sacerdotes são pintados como se fossem profetas: Ezequiel, Zacarias, Malaquias, Ageu. Até Elias! Todos, homens do templo. Finalmente, são dispensáveis. Num sistema sacerdotal, hierocrático, regido por direito divino escrito, os profetas tornam-se persona non grata.  

Pistas para (re)visão do discurso histórico-social dos profetas  

Que um conflito aberto entre a profecia e o Templo irrompeu violentamente a partir da restauração de Judá, pode-se depreender de uma série de textos, que apresento como sugestão de revisão da literatura dita profética.

Nm 12 é absolutamente incontornável. Apresentei no Congresso Brasileiro de Pesquisa Bíblica meu parecer a respeito, não sem uma pontual contestação pública, e o texto completo está disponível (RIBEIRO, 2004). Deixo os detalhes para dizer, de uma vez, que “Miriam” representa não apenas a profecia, mas a profecia de liderança campesina feminina. Violentada pelo discurso de prerrogativa exclusiva de porta-voz de Yahweh, a profecia enfrenta “Moisés”, na defesa de quem Yahweh responde com a afirmação tanto da insuficiência procedimental da profecia, quanto da supremacia cúltico-litúrgica, rigorosamente oracular nos termos em que, depois, Malaquias declara, de “Moisés” – o mensageiro é o sacerdote. E pronto.

1 Re 17 é um caso especial: trata-se de perícopes em que o campeão da monolatria de guerra, “Elias”, interage com a “viúva”. Tenho textos publicados sobre a passagem, e o leitor pode consultar os detalhes lá. Aqui, apenas resumo a leitura, defendendo a hipótese lá desenvolvida de que “Elias” representa discurso do Templo, diante de críticas campesinas específicas apresentadas em confronto ao discurso teológico “ortodoxo” dos sacerdotes em face de uma situação de seca. “Elias” representa um caso típico de cooptação da memória profética. Ali, “Elias” é o próprio Templo.

Outra passagem que mereceu minha atenção foi Os 2,4-15. Ela não é minha mulher” não representa, a rigor, um caso de cooptação da memória de um profeta, mas da cooptação da literatura profética. A passagem, a rigor, sequer menciona Oséias. Mas pelo fato de ter sido incorporada ao Livro do Profeta Oséias, faz com que a tese defendida na passagem seja tomada pela boca do profeta. Como disse no artigo publicado, no que me diz respeito, a passagem inteira pode ser tomada como a voz do Templo em plena cerimônia de divórcio de Yahweh. Mais ou menos como se, sendo a população obrigada por um Esdras/Neemias, meio ensandecido, sob ameaças e cumprimento de ameaças, inclusive, de tapas e arrancamento de cabelos, a expulsarem (su)as mulheres “estrangeiras”, Yahweh tenha sido forçado a dar ele mesmo o exemplo...

Finalmente, Is 4,2-6, uma passagem interessante, porque, em primeiro lugar, pode parecer “profética”, porque está, afinal, nos Profetas. Uma leitura atenta, mas talvez insuficientemente detalhista, pode fazer valer a tese de que, sim, é verdade, o Templo fale mesmo em textos tido como “proféticos”, ainda que não na proporção com que este artigo, afinal, quer fazer seja pressuposto. Com efeito, há de se concordar, não há outro espaço em toda a Bíblia Hebraica onde haja uma concentração tão grande de terminus technicus da teologia do Templo: estão praticamente todos lá, o que pode indicar tratar-se, afinal, da ipsssissima vox sacerdotal. Eu, contudo, cheguei a conclusão diferente: tratar-se-ia de um caso muito especial de reinscrição transgressiva: a terminologia técnica do Templo é usada, pela profecia feminina, contra o próprio Templo, como a quem diz, no final das contas, que o que interessa mesmo, de verdade, é que o camponês possa plantar e colher. O resto, bem, o resto é o resto... O irônico em tudo isso é que, no cabo de guerra do vai-não-vai, a peça acabe sendo incorporada num discurso que endossa a ideologia que, a rigor, o poema quis desprezar...

Mas o que mais chamaria a minha atenção, no momento, é que as narrativas que compõem os Profetas podem ser separadas em dois grupos: o grupo dos textos de imprecação sócio-econômica, no “bom” estilo de Amós, e o grupo dos textos de polêmica religiosa, cujo campeão, o Dêutero-Isaías, coroa com seu proto-monoteísmo a apoplexia “oseiana” do “adultério” popular. Salvo engano – eu confesso estar afirmando isso sem o necessário crivo crítico (é necessário averiguar a validade de tudo quanto aqui disse, e principalmente desse último parágrafo) – o conjunto da literatura profética se apresenta como a costura, ora mais pendendo para um lado do que para o outro, de textos de denúncia social com textos de imprecação monolátrica. No que diz respeito à minha hipótese aqui defendida, os textos de denúncia social representariam memória da voz profética ligada ao campo e à crítica urbana, ao passo que à histeria monolátrica, não só aquela de extremo mau gosto de um Ezequiel, mas mesmo as mais econômicas, responderia o Templo e, naturalmente, seu corpo sacerdotal masculino e misógino.

Talvez haja mesmo alguma virtude na intuição mais antiga de que, seja como for, a profecia clássica nasce no Norte, com Oséias e Amós, ou, ainda mais cedo, com os campeões Elias e Eliseu. A profecia nunca foi uma prerrogativa exclusivamente israelita, é verdade, mas a uma profecia independente político-socialmente, concentrada em imprecações contra os desmandos sócio-econômicos de uma liderança urbana corrupta responderia bem o contexto de uma Samaria muito bem urbanizada, rica, integrada político-militarmente ao aparelho assírio, pelo que se pode depreender das informações advindas da arqueologia iconográfica de que tropas israelitas, especificamente do Norte, compunham mesmo o exército Assírio. E isso desde o século IX. Caso interessante se apresenta como o da tropa de bigas israelita sendo anexada inteiramente ao exército de Sua Majestade após a destruição do Estado de Israel em 722. Um Estado em pleno desenvolvimento econômico deve ter gerado condições de desigualdade e opressão social de uma tal envergadura, que terminaria por eclodir no surgimento de uma classe especial de liderança popular, legitimando sua revolta e se conclamando representação popular sob a inspiração de Yahweh. Afinal, se a França deve dizer-se regida pela (deusa) Razão em tempos de Revolução Francesa, à medida que Napoleão e seus soldados marcham sobre a Europa, é compreensível que os críticos sociais daquela época e daquele lugar legitimem-se, também eles (compreensível, não desculpável), num suposto partidarismo de Yahweh. Hoje deveríamos – estamos prontos – decantar todos esses precipitados e reduzi-los a uma expressão, digamos, contemporânea... Seja como for, Yahweh, naquelas bocas, está irado, sim, mas contra a Grande Organização (Coroa – Templo), e não por ciúmes daquele ou daquela, mas porque lhes comem seus filhinhos, chupando-lhes, salgadas, as tripas...

No Sul, é coisa para se investigar, e principalmente depois da tese de inexistência de um Estado davídico-salomônico unificado, se uma Jerusalém “eterna”, preservada mesmo sob a “conquista” de Davi (é o caso de nos perguntarmos se não vale para a Jerusalém jebusita – israelita o mesmo que vale para uma população palestina israelita – canaanita), não teria dado azo para a concentração de um aparelho sacerdotal muito mais fortalecido do que seu similar nortista, além do que a aventada hipótese de uma Judá mínima, inexpressiva, remota, leve à hipótese da ausência de contexto para a profecia nos termos em que eclode no norte. O encontro das duas expressões “religiosas”, os críticos sociais, os “críticos do sistema” do norte, e os sacerdotes do sistema, do sul, durante as fugas da população de Israel para Judá, em decorrência das invasões assírias, pode ter marcado, sob o signo do conflito – logo, apontando desde cedo para a necessidade de cooptação da memória dessa força social subversiva – as relações de “poder” político-teológico na novel Nação judaico-israelita, herdada por um Ezequias boníssimo...

Bem, boníssimo segundo uma tradição. É bastante plausível que o Sl 53 se refira a Ezequias como “devorador do meu povo” (“meu povo” aí significando “povo de Yahweh”), e descrevendo-o nada respeitosamente como um medroso durante a invasão de Senaqueribe em 701. Corrobora essa leitura a revisão do Sl 53 consignada pelo Sl 14, em que justamente o verso constrangedor, que permite, numa só tacada, seja identificado o contexto gerador do salmo com o cerco de Jerusalém, e o rei medroso, ontem leão, hoje um rato, com o rei Ezequias, é providencialmente substituído por uma lenga-lenga genérica, falando de pobres e de justos, palavras sem repercussão prática nos corredores do poder, mas nem por isso ineficientes até para a demagogia. É provável que Judá tivesse seus críticos sociais, poucos, dado seu pouco fôlego, ou seus “intelectuais orgânicos”, mínimos, se Judá era mesmo, como pretende a arqueologia revisionista mais recente, uma pequena vila de camponeses e seu orgulhoso sistema sacerdotal, milenar (essa última parte vai por minha conta), e que, afinal, não seria necessário o êxodo dessa classe desde o norte. Mas o fato é que é muito mais provável que, dado aquele êxodo, alguém menos íntimo das bondades daquele que foi preso como um pássaro na gaiola, de quem Senaqueribe se gaba ter levado o trono de marfim – afinal, não apenas Amós tinha do que falar quanto aos reis de Samaria, Judá também tinha sua opulência, e, pelo que vou vendo, à custa do mesmo preço denunciado pelo profeta – tenha, afinal, se sentido, então, mais livre para arriscar o pescoço. Dê-se mais um tempo, e seja trocado o cetro pelo peitoral, e logo essa gente saberá o preço de meter-se nas alturas...

Esse momento particular da história de Israel tem servido para teses interessantes, a última a cair, pelo que me lembro, é a independência, nunca, é verdade, atestada com unanimidade, de um “documento” E, apresentado ao público desde o final do século XIX. Esse documento E foi, quando defendido, reputado ao movimento profético, e, importante lembrar, ao movimento profético nascido no Norte. A tese de um E profético já se dissolveu faz, pelo menos, trinta anos – mas o movimento profético “monolátrico”, clone teológico do Templo, permanece, como pelo menos, registro fóssil, e recurso estratégico para a defesa de um monoteísmo que se esforça, ainda, por nascer da genialidade de, pelo menos, um “Elias”.

Desconfio, e para o dizer, digo logo, que a força (secreta?) que motiva essa linha de orientação da pesquisa seja, afinal, a hipótese de que o monoteísmo seja intrinsecamente bom. Talvez fizesse mesmo parte do conjunto das atitudes morais constitutivas do que Kant intui como “imperativo(s) ético(s)”, fundamento de uma moral prática, que Schopenhauer critica de subserviência ao sistema teológico. Uma tal atitude natural como essa, deve ser relacionada com homens especiais. Um Moisés fundador do monoteísmo, ainda que de uma monolatria incipiente, vai tornando-se difícil de ser sustentado, salvo nos ambientes onde não se dê importância para as evidências literárias e históricas, e cuja pressão tradicional e dogmática seja fomentada pelo sistema político de gestão do sagrado. Não é esse o caso da academia, muito mais séria nesse ponto. O que não significa, contudo, que estejamos livres das idéias mais idílicas de uma genialidade espiritual como necessidade histórica para uma tese fundamental e essencialmente tão nobre quanto o monoteísmo...

E se, proponho, nem que por um segundo, seja encarada toda a proposição monolátrica e monoteísta engendrada por Israel – perdão, pelo Templo de Jerusalém – como a história, nesse caso indecorosa, da supressão, pela forma, seja física, seja psicológica, da construção de um sistema político-religioso maquinado programaticamente de cima para baixo, programado e implantado sob o regime da legitimação religiosa, claro, cujo modelo exemplar mais parecido seria o discurso programático de A República? E se o caráter nobre do monoteísmo consiste numa projeção de nossa própria constituição cultural (Schopenhauer, Feuerbach), antes que da tese, primeiro filosófica, em si mesma – mercê de uma Grécia que engole uma Pérsia e, com ela, a tese judaica, tornando ontológico o que é político – e depois político-teológica, fadada a lutar eternamente contra as propensões humanas para as representações antropomórficas inumeráveis da Natureza? E se, no fundo, não estamos mesmo, e até hoje, “encantados” por esse mantra?

Talvez, apenas talvez, se a academia deixar de lado, por um segundo que seja, a idéia grega do Uno-Tudo-Todo de Parmênides, também a idéia grega de um Espírito-bom-num-corpo-mau, e pensar a tese monoteísta a partir dos fundamentos culturais e dos registros histórico-sociais da Bíblia Hebraica, talvez, insisto, chegue a sentir um princípio de enjôo com a idéia em si mesma, e chegue a perguntar-se, mas, como?! A partir daí, a tese de um profetismo nem um pouco historicamente interessado nesse assunto possa parecer menos desbaratada. Conto os dias para que as teses da historicidade babilônica ou próximo-babilônica de um “profeta” (o “Dêutero-Isaías”), gênio do proto-monoteísmo, nós, enquanto ainda nem o éramos, mas já, lá, o projeto de “nós”, mostre-se, afinal, um equívoco tópico-utópico: tópico, porque se venha a descobrir, afinal, tratar-se, também ali, da voz sacerdotal ruminada bem mais tarde do que gostaríamos (e quanta força se faz!), e utópico, porque, afinal, não é tanto que gostemos do monoteísmo em si mesmo, mas que tenhamos em suprema conta a sua essência intrinsecamente, propriamente, inequivocamente divina...

Talvez seja esse o meu próprio diagnóstico: algum tipo de patologia ainda não suficientemente estudada, cujo sintoma seja a compreensão profunda de uma inalienável constituição ocidental, significa dizer, filosoficamente e teologicamente monoteísta, como resíduo inexorável da irreversibilidade histórica (Prigogine), a despeito da consciência de que tal conquista do Espírito, da Razão e da Verdade tenha sido trazido à luz, vá lá, com os recursos que a esse mesmo Espírito, hoje, assim construído e constituído, pareceria desumano, demasiadamente desumano (Edgar Morin). Para o dizer de forma bastante direta – não me parece melhor ou pior do que qualquer outra a tese monoteísta: são todas elas idéias que nos possuem, mais do que nós a elas, ainda que as saibamos usar, também, segundo nossos interesses, que, no fundo, comungamos com elas também. Não há base alguma para que sejam comparadas as representações do sagrado, senão as predileções, adquiridas a que preço, meu Deus, por essa ou aquela. Tendo chegado a esse estado de compreensão da doutrina, mas impossibilitado de arrancar da pele seu traço constitutivo, resta-me vingar-me de tudo isso – não falei de patologia? – fazendo com que o que consideraria culpa, parecendo a outros, a honra, recair sobre o Templo, enquanto, para aqueles, sobre os profetas. O que, fica agora claro para mim, nos torna iguais num ponto: gostamos, afinal desses camaradas, os profetas... Uns, porque são os artífices do Sagrado que nos corre nas veias, ao passo que, para mim, justamente porque não se teriam metido nesses assuntos.  

Conclusão  

Para quebrar o ar depressivo com que, a rigor, concluí o que vinha de dizer, talvez valha a pena converter em roteiro os desdobramentos da hipótese. E diria tratar-se do seguinte:

1)     promover uma revisão da literatura profética a partir do projeto de verificação da viabilidade da hipótese: é possível ler os Profetas Posteriores na condição de cooptação sacerdotal da memória profética? (claro: “caber” não prova que chegamos, afinal, à “verdade”. Em termos históricos, em termos historiográficos, em termos estritamente exegéticos, jamais sairemos da condição de portadores de hipóteses. Hipóteses que são, já sabemos, representações humanas, demasiadamente humanas – sendo igualmente justo dizer que há representações mais lúcidas, contudo);

2)     reavaliar a postura implícita com a qual a academia, consciente ou inconscientemente, se aproxima da questão temática monolatria/monoteísmo, com o objetivo de verificar até que ponto a busca pelas origens do monoteísmo na “profecia” não responda a uma tese implícita da condição essencialmente boa da própria tese, e, de roldão, do componente social “profeta” (estamos encantados pela leitura greco-ontológica da tese político-religiosa do monoteísmo judaico, que nos leva a ler “Eu sou”, helenicamente conveniente, quando uma leitura judaica deveria ler “Eu estou”? Cai até melhor na passagem, alguém há de concordar)

3)     reavaliar as hipóteses de trabalho do contexto gerador da Torah e dos Nebi’im: acordo entre dois poderes polares? Expressões comunitárias conflitantes, mas, de resto, consensuais por meio de congresso tribal? Imposição político-teológica, de cima para baixo, de um projeto ideológico patrocinado e promovido por uma nação estrangeira, a uma população autóctone e, agora, provinciana? (uma leitura “marxista” da Bíblia Hebraica, concordo, é démodé. Mas, convenhamos, uma leitura não minimamente marxista dessa mesma literatura é pura ideologia).

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