Diálogo com Osvaldo Luiz Ribeiro
Osvaldo Luiz Ribeiro
Sóstenes, seu texto [“Deus não é genocida”] foi divulgado no Facebook e o li. Acho que não o conhecia. Uma texto provocativo e público. Logo, provocado, comento-o.
Sostenes Lima
Caro Osvaldo Luiz Ribeiro, visito o blog Peroratio com certa frequência. Gosto dos seus posts. Antes mesmo de você me honrar com sua presença aqui, eu já tinha colocado o Peroratio como um dos meus poucos blogs recomendados. Obrigado por sua visita.
Aproveitei o seu comentário para dar continuidade à interlocução. Gostei de cada uma das suas colocações. Não vou rebatê-las, de modo algum. Razão: me falta profundidade e sobra retórica (rs). Quero apenas comentar cada um dos seus itens (a, b, c, d).
Osvaldo Luiz Ribeiro
a) Marcião fez o mesmo que você, no século II. Foi mais longe, ele, eu acho – em todo caso, vi os mesmos arrazoados. Separar um deus bom de um deus ruim.
Sostenes Lima
a) Penso que as razões que levaram Marcião a propor uma divisão entre o Deus do A.T. (um demiurgo mau) e o Deus no N.T. são um pouco diferentes das que me levaram a escrever o texto “Deus não é genocida”. Embora suas propostas estivessem, em grande parte, ligadas a questões éticas, Marcião, até onde sei, não as elaborou para contestar o apoio dos cristãos a uma guerra específica. Me parece que a maior preocupação dele era criar uma conciliação ética entre o Deus do A.T. e o Deus do N.T., sem que isso estivesse ligado a uma questão crucial de sua época. De qualquer modo, não estudei Marcião. Tenho pouco a dizer sobre suas postulações teológicas.
Osvaldo Luiz Ribeiro
b) Você trata Yahweh, deus judeus, talvez israelita, como deus pagão. Foi exatamente o que Marcião fez. Não vejo sentido – se você tirar Yahweh, o deus ocidental desaparece. Não há monoteísmo sem Yahweh – e estou falando estritamente em termos históricos, porque não acredito em acesso metafísico;
Sostenes Lima
b) Minha discussão (e contestação) gira em torno de Yahweh Sabaoth (Deus dos Exércitos), não de Yahweh em si. Vejo problema no Deus invocado pelos judeus para lhes garantir vitória nas empreitadas militares, não no Deus de Israel em si. Ao criar especificidades para Yahweh, os judeus acabaram seguindo os mitos e religiões de sua época e de seu entorno geográfico-cultural. Todos os povos, com os quais Israel interagia, tinham deuses para praticamente todas as atividades (sociais, econômicas e culturais) e esferas da vida, tais comoagricultura, guerra, justiça, saúde. O que distinguia os judeus dos outros povos é que eles congregavam essas potencialidades divinas num só ser. Daí o monoteísmo. Contudo, penso que o Yahweh da guerra, o Yaweh da agricultura (se houver), o Yahweh da saúde etc. são imitações pagãs. Esses deuses pagãos, embora chamados de Yahweh, não são propriamente o Yahweh pai do messias, o pai do Cristo dos cristãos.
Vejo que a construção de um Deus com paixões, pretensões e incursões militares decorre da necessidade dos judeus. Os registros das ações desse Deus não podem ser aprioristicamente tratados como revelação. Só tenho de aceitar como revelação todos os registros dos atos de Yahweh – com todas as especificidades dadas pelos judeus – se eu seguir rigorosamente o dogma da inerrância e da inspiração verbal plena. Caso contrário, posso conceber boa parte do A.T. como uma narrativa de autocompreensão religiosa do povo judeu, incluindo aí a criação/projeção de um Deus que lhes atendesse certas (ou quase todas) demandas da vida cotidiana. Muito do que há no A.T. é, para mim, então, resultado do modo como o povo judeu (dentro dos contextos social, cultural, econômico etc. que o cercavam) concebia Deus. Portanto, as ações atribuídas a Deus podem não ser necessariamente de Deus.
O discurso religioso é, talvez de todos os discursos, o que tem mais poder de construção e manutensão, porque invoca uma autoridade supra-humana, inquestionável. Dogmas são criações discursivas poderosas porque estão assentados em discursos sagrados, que reivindicam para si mesmos um poder legítimo, inerrante e não suscetível à crítica e à suspeita.
Osvaldo Luiz Ribeiro
c) Não entendo como você pode se dizer um cristão convicto e, por isso, negar Yahweh, um deus pagão e assassino, quando o Cristianismo é muitíssimo mais assassino do que Yahweh - se somarmos todas as mortes atribuídas a Yahweh a gente pode dar um século de matança cristã que fica zero a zero, com 19 séculos de sangue ainda para a gente negociar com algum outro deus pagão...
Sostenes Lima
c) Nesse ponto, penso ser necessário distinguir Yahweh e judaísmo, do mesmo modo que é necessário distinguir Cristo e cristianismo. Cristo não fez e não faz tudo que os cristãos lhe atribuem. Houve na história do cristianismo diversas incursões de massacre e outros desastres éticos, já denunciados por mim no artigo “A agenda de Jesus se opõe à agenda dos cristãos”. Quem fez isso, embora em nome de Deus, foram os cristãos, não o próprio Deus. Portanto, os 19 séculos de violência praticada pelo cristianismo devem ser interpretados à luz das necessidades e contexto histórico dos cristãos, não à luz da revelação.
Minha interpretação do A.T. vai nessa mesma direção. Yahweh não é sinônimo de Israel ou de judaísmo. Nem tudo que Israel e/ou judaísmo atribuem a Yahweh foi realmente praticado por Yahweh. Como disse acima, o problema não está com Yahweh, mas com o Deus que entra na guerra para exterminar violentamente os inimigos de Israel. É o sanguinário Yahweh Sabaoth que é pagão, não o Yahweh.
Osvaldo Luiz Ribeiro
d) o final do seu texto, aí, sim, me interessa – mas, cá entre nós, ele pode funcionar bastante bem sem essa retórica de "sou cristão" mas o AT que vá pro inferno: se é para mandar às favas, mande tudo, e fiquemos com a ética humanista e secular moderna que tá de bom tamanho...
Sostenes Lima
d) Gosto da ética humanista secular. Penso que ela dá conta de todas as demandas éticas da comunidade humana global, sem qualquer apelo às bases éticas das diversas religiões. Não há que se recorrer à ética cristã (ou qualquer ética religiosa) para se chegar a um padrão ético satisfatório para a continuidade e desenvolvimento da família humana (que envolve o ser humano e todos os outros organismos e elementos naturais de seu entorno). Na verdade, a ética religiosa tende mesmo a atrapalhar mais que ajudar. Temos visto que a religião, embora grandemente assentada em questões éticas, tende fossilizar a ética e transformá-la em moralismo. Penso que uma das bases do embate de Jesus com as instituições de sua época se deu, em grande parte, por causa do desvirtuamento da ética da lei em moralismo e tradição.
Coloquei a figura do cristão no meu artigo exatamente para dizer que, mesmo olhando sob a ótica religiosa – seja cristã ou judaica – o genocídio jamais é sancionado. Só mesmo uma degeneração da ética cristã, judaica (ou de qualquer outra ética religião) pode dar legitimidade ao genocídio; só quando se coloca algum dogma acima da ética (é bom lembrar que disso decorre a maior parte dos movimentos fundamentalistas) é que se pode respaldar ou apoiar qualquer forma de genocídio.
Osvaldo Luiz Ribeiro
e) para mim, é impossível separar a tradição cristã de seu passado judeu - IMPOSSÍVEL: tudo, absolutamente tudo, no cristianismo está assentado de modo sine qua non em assentamentos veterotestamentários. Penso que devíamos é fazer a crítica cristã a partir dessa relação, e não tratar o cristianismo e o fato de sermos cristãos como algo "acima" ou "melhor" do que foi o judaísmo veterotestamentário. Foi não: foi pior, mil vezes pior.
Sostenes Lima
e) Também acho que todo o nosso fundamento teológico é dependente do monoteísmo judaico. Somos todos filhos de Yahweh, por assim dizer. A questão central para mim não é pesar qual religião foi/é mais cruel: judaísmo ou cristianismo. Essa questão não me interessa. Também não me interessa saber qual Deus fez mais besteiras e barbaridades na história: o Deus dos judeus ou Deus dos Cristãos. Meu objetivo ao escrever o artigo não foi para comparar a representação que os judeus e os cristãos constroem para o seu Deus, e a partir daí dar o veredito sobre qual Deus é mais bárbaro. De modo algum. Em se tratando de representação, todos os deuses tendem a ser bárbaros. Não tenho a menor dúvida de que há muitos deuses bárbaros e pagãos tanto no judaísmo e quanto cristianismo.
Meu objetivo central foi denunciar a representação que judeus e cristãos têm Deus, especialmente a representação que atribui a ele uma identidade belicosa, sanguinária. Eu quis dizer que algumas representações de Deus, construídas em diversas manifestações do discurso sagrado (livros sagrados, profetismo, prédica etc.), não devem ser levadas a sério e tratadas com a reverência que reivindicam. Há que se colocar certos pressupostos éticos antes.
Osvaldo Luiz Ribeiro
"Meu voto", para brincar com a declaração da moda...
Meus respeitos,
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