quarta-feira, 31 de outubro de 2012

(2012/726) Da série "Mitos da Reforma (I)" - "Sola Scriptura"


1. Há uma série de mitos e inverdades narrados, cantados e louvados em torno da Reforma. Cada uma dessas inverdades dá um texto...

2. Começo pela mais gritante delas: "sola Scriptura"...

3. Há poucos mitos mais arraigados na mentalidade protestante-evangélica do que esse.

4. Lutero enfrenta Roma. Um homem contra o papa. Um monge contra a Igreja. Não, não é um crente contra a Igreja Católica. A Igreja Católica, como a poderíamos chamar, não existe nesse momento - ainda: existem Lutero e a Igreja cristã, a essa época, com quinze séculos de história nas costas.

5. A Igreja cristã cresceu assumindo-se sobre a Tradição. A Bíblia até estava lá, era até lida, estudada, mas a Tradição dava as cartas, expressando-se, oficialmente, através dos Concílios.

6. Lutero enfrenta Roma. E, para fundamentar-se, faz a sua interpretação "evangélica" de porções das Escrituras confundir-se com a própria Escritura. Tanto eram porções que recusou-se a aceitar Tiago como livro canônico. No fundo, Lutero enfrentou Roma com sua interpretação...

7. Mas não podia usar sua interpretação contra Roma. Assim, sua interpretação funde-se com a própria Bíblica interpretada - de modo que a retórica, o argumento político, passa a ser a Bíblia contra a Tradição, a Bíblia contra o papa, a Bíblia contra Roma. "Vocês fiquem com o Papa - eu ficarei com a Bíblia"! Esse Lutero...

8. Um engodo.

9. Engodo que se espalhou a cada divisão dessa Igreja-mãe. Todos os Luteros dessa história - o útero da Igreja Protestante/Evangélica está carregado de ovos de Luteros, é ela um grande abdômen de içá -, usaram, usam e usarão essa retórica - a Bíblia! - contra os outros: contra Roma, contra o próprio Lutero, contra qualquer um...

10. Mas não é Bíblia é nada - é sempre a Tradição. Sempre. Católicos, luteranos, presbiterianos, anglicanos, batistas, metodistas, pentecostais, neopentecostais, mórmons, testemunhas de Jeová, quackers, menonitas, quadrangulares - todos, absolutamente todos, sem nenhuma exceção, repetem, consciente ou inconscientemente, o gesto e a retórica de Lutero: usam suas próprias interpretações, mas, todavia, alegam usar a Bíblia...

11. Engodo.

12. Não é apenas isso: a base fundamental dessas pregações, com raras exceções - os testemunhas de Jeová, por exemplo, os mórmons - é, mesmo, a Tradição conciliar. A concepção doutrinária de Deus - a Trindade - só se sustenta nos Concílios. Se você os suspende, cai a doutrina. E, todavia, ela permanece intacta...

13. "Sola Scriptura" é a maior dissonância cognitiva protestante-evangélica, responsável pelo altíssimo grau de ignorância e equívocos na tradição das igrejas pós-Reforma. Qualquer um diz o que quer dizer e usa a Bíblia para sustentar o que diz.

14. No fundo, a Bíblia transformou-se num instrumento de controle social - seja doutrina, seja cura, seja exorcismo, seja arrecadação de prosperidade, seja lá qual for a prática fundamental dessa igreja, é por meio do uso político e retórico da Bíblia que ela se introduzirá e manterá, e será, sempre, por meio dela que ela será pregada...

15. Logo, a diferença fundamental entre a prática católica e o "sola Scriptura" protestante-evangélica é que esta é alguma coisa entre ignorância e hipocrisia...

(...)

16. Se estou "pregando" uma prática realmente bíblica em lugar da retórica falsa de "sola Scriptura" e manutenção da tradição? Não! Claro que não! Estou apenas dizendo que eu acho que as igrejas protestantes e evangélicas deviam assumir que são tão tradicionais quanto a católica. Deveriam assumir que não pregam "a" Bíblia, mas a sua interpretação tradicional da Bíblia. Isso tornaria legítimo o seu discurso...

17. Se farão?

18. Não. Lamentavelmente, uma vez que você aprende a viver num mundo que não corresponde à realidade, você é capaz de fazer a realidade assumir a sua retórica, mas não consegue mais deixar a sua retórica e assumir a realidade...

19. A realidade é o maior inimigo da fé.




OSVALDO LUIZ RIBEIRO

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