sexta-feira, 31 de agosto de 2012

(2012/654) Como assim "a questão 'Deus'"?


1. A evidência da inteligência "espiritual" está na capacidade de se perceber "a questão 'Deus'". Isso é o que se diz. "A questão 'Deus'" é aquela que separa os bons dos maus, os valorosos dos sem valor, os inteligentes dos idiotas. Que coisa: "a questão 'Deus'"...

2. Como assim "a questão 'Deus'"? Por que, meus amigos, "a questão 'Deus'"? Não é: a) porque o sujeito é monoteísta?, b) porque ele é místico-obsessivo?

3. Essa coisa toda, profundamente aparentemente profunda, faz sentido, eu sei, para judeus, cristãos e maometanos - mas não para o restante do mundo. Que sentido faz "a questão 'Deus'" para um hindu?, um budista, um xintoísta, um adepto das milhares de correntes religiosas politeístas africanas, para as religiões populares chinesas e ameríndias? Nenhum sentido.

4. Porque, para eles, não há uma questão "Deus". São politeístas. A inteligência deles está em racionalizar seus mitos politeístas e deles extrair a sua máxima inteligência, assim como a inteligência dos monoteístas está em racionalizar esse mito monoteísta e extrair dele a máxima inteligência.

5. Desinteligentes se tornam, é meu juízo, quando deixam de ver ai suas próprias projeções, sua própria tradição, sua própria fé, sua própria neurose, e passam a tomar o mito como a) descrição profunda da realidade, b) inteligente, c) necessário, d) significante...

6. Feuerbach chamou a isso alienação.

7. E ainda é.

8. Você pode explicar a alienação de modo marxiano, você pode explicar a alienação de modo freudiano, você pode explicar a alienação pelo sutilíssimo e quase imperceptível modo eliadiano, você pode explicá-la pelo modo nietzschiano - as explicações são variadas, mas o fato, o fato, senhores, é um só: alienação.

9. Os "estudiosos" sabem disso. Se forem espremidos contra a parede, confessam que sabem, e, no segundo seguinte, argumentam que, sem "a questão 'Deus'" (se são monoteístas), não há sentido para a vida e, ah, oh, ui, morremos de desgosto). Se o sujeito é político, um Voltaire, dirá que ele mesmo se segura, mas que é preciso pregar um Deus justo e vingativo, por causa da população, que, se ela se dá conta do mito, Deus nos livre! Se o sujeito é um filósofo da longa extirpe monoteísta, vai inflamar a face de Deus com um fogo de palavras e, à moda de Levinas, convencer quem já crê de que se está, afinal, diante da prova - o fogo - da realidade última - o Deus do fogo.

10. "A questão 'Deus'" ou "a questão "Deuses'" é uma só questão: a nossa questão psicológica de fundo - qual é o compromisso que tenho para agarrar-me a ela como se eu não soubesse - se sei - do que se trata? É freudiano?, é marxiano?, é nietzschiano?

11. Porque, se eu sei do que se trata, porque dizer que se trata de outra coisa?



OSVALDO LUIZ RIBEIRO


Um comentário:

Victor Santos disse...

É uma questao profunda mesmo. Estávamos discutindo um pouco dessa projeção e possessão de Deus na aula de Teologia Braileira com o Delambre.
A nível particular já é uma questão difícil, lutar contra uma epistéme construída durante anos de tradiçao.
A nível instituconal, ixx! É dificl até chegar na aporia.
Mas os "leigos", por decepção ou traumas, estão questionando. Os domadores de Deus que se cuidem.

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