1. Vira e mexe, cita-se o "abandono" do Cristo na cruz. É o "modelo" dos "modelos" do "trágico" e do destino de solidão do homem em face do divino. Quanta mística não se desenhou aí em cima desse Gólgota de desamparo! Quanta canção triste não se compôs nas asas desse vento e desse brado - "Deus meu!, ó, Deus meu, por que, Deus meu, por que me desamparaste?...
2. Não me levem a mal - eu acho que aí se labora em um equívoco enorme - isso se quem faz essa referência não sabe do que pode estar por trás desse "desamparo", porque, se sabe e, todavia, ainda assim, emprega a referência: nesse caso, mais do que equívoco, é encenação retórica, cooptação do desaviso, aproveitamento de racionalizações fúteis, fumaça de gesticulações...
3. O primeiro grande equívoco é se tomar o personagem da narrativa como seu próprio sujeito - oh, argumenta-se, o Cristo, lá está ele, desamparado de seu Deus: é a tragédia, é o trágico da vida... Ora, senhoras e senhores, nenhum personagem de narrativa alguma é sujeito de si mesmo. Sujeito aí só há um: o escritor da narrativa. É ele, e só ele, quem pôs o Cristo a bradar. Não se trata do Cristo. Se trata do escritor...
4. E o que o escritor faz é citar o Sl 22. Não só nesse brado - as demais "palavras da cruz" são pinçadas do Sl 22. E o Sl 22 é uma "encenação" de desamparo, um artifício de abandono, para terminal na glorificação, da vitória, no enlevo... O braso da cruz não é de desamparo: é o anúncio de que, aquilo que aparentemente é derrota, é, na verdade, vitória.
5. Não há abandono aí, não há desamparo aí, não há solidão: há teologia a posteriori.
6. Não se trata do Cristo, mas do Evangelho:nada aí é, mais real, é tudo teológico, literário, retórico. Não estamos no momento da cruz, mas anos depois, décadas depois. Não estamos diante do Jesus de Nazaré crucificado, mas diante de um construto teológico totalmente controlado pelo evangelista, seja ele quem for. Ah, mas o Cristo sofreu e foi abandonado... Bem, se foi ou não, não se trata mais dessas narrativas evangélicas e, de qualquer forma, da história mesma, tal qual se deu, e se se deu, não sabemos nada e coisa alguma - não se pode saltar da narrativa, décadas depois, para o evento histórico cenicamente referido, décadas antes, como se a narrativa fosse um portal do tempo...
7. Deixemos essas operações de ir de lá para cá para os leigos. Os não leigos, os que sabem do que se trata, não convém a nós cooptarmos narrativas para projetos retóricos.
8. O brado do Cristo da cruz é um brado de vitória: não há nenhuma tragédia aí, tanto mais quanto os evangelistas trataram, logo, de ler a coisa toda como medida e sopesada por Deus desde o início dos tempos: a coisa toda, tomada como "tragédia", além de falsa, soa como uma brincadeira de criança, em que se finge tanto ser princesa que se acaba por esperar, de verdade, um príncipe encantado.
9. Uma narrativa tem sua vida pulsando na mão do seu escritor: cada personagem, é ele que desenha e é ele que anima. Não há nem intenção nem realidade nos personagens - apenas, no escritor. E, se o Cristo brada, é o escritor que brada, não o Cristo, e, se se vai procurar a razão e o sentido desse brado, não é no peito e na boca do crucificado que se há de encontrá-los, mas na intenção de quem redige a história. E a intenção me parece ser essa: não é o fim, como cuidais, senhores (vai dizendo o escritor), é o começo da glória - como sabemos desde que todos ouvimos, nas sinagogas, a leitura do Sl 22...
10. Tragédia? Não, não no sentido "trágico" (o que é outra história). É um grito de vitória. E, claro, não do Cristo, que não é quem, ali, está gritando, mas dos discípulos, que continuam sua luta, transformando sua morte em vitória.
9. Uma narrativa tem sua vida pulsando na mão do seu escritor: cada personagem, é ele que desenha e é ele que anima. Não há nem intenção nem realidade nos personagens - apenas, no escritor. E, se o Cristo brada, é o escritor que brada, não o Cristo, e, se se vai procurar a razão e o sentido desse brado, não é no peito e na boca do crucificado que se há de encontrá-los, mas na intenção de quem redige a história. E a intenção me parece ser essa: não é o fim, como cuidais, senhores (vai dizendo o escritor), é o começo da glória - como sabemos desde que todos ouvimos, nas sinagogas, a leitura do Sl 22...
10. Tragédia? Não, não no sentido "trágico" (o que é outra história). É um grito de vitória. E, claro, não do Cristo, que não é quem, ali, está gritando, mas dos discípulos, que continuam sua luta, transformando sua morte em vitória.
OSVALDO LUIZ RIBEIRO
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