terça-feira, 3 de julho de 2012

(2012/538) Morte do autor e "políticas inclusivas" - um equívoco pragmático


1. É apenas um pensamento: ainda não está maduro, nem sistematizado. Vai aqui, enquanto eu o penso, à medida que leio texto que Felipe Alves me manda para análise.

2. Passos de um raciocínio sobre morte do autor e políticas e ideologias plurais e inclusivas:

3. A Bíblia foi e é usada para a manutenção de projetos ideológicos tomados como expressão sagrada, de homens sagrados, pronunciadas há séculos, sob inspiração: o que Deus dizia, os homens diziam, e o que aqueles homens disseram nós ouvimos hoje, na catequese, no púlpito, na doutrina, da fé.

4. No fundo, o sistema inteiro produz a manutenção dos valores da classe dominante - em sentido econômico, político, cultural, de gênero, de raça. Em nome dos autores do passado, alcança-se a manutenção dos valores do presente.

5. Para o questionamento dos valores do presente, logo, do domínio das classes dominantes, objetiva-se interditar o acesso ao fundamento político da retórica dominante.

6. Anuncia-se, então, como "regra", a morte do autor. Uma vez que os textos são escritos, os autores estão mortos. Mortos, o texto não se traduz mais em veículo de comunicação das intencionalidades autorais neles esboçadas, mas a "sua própria intencionalidade".

7. Mortos os autores e perdida a sua intencionalidade, as classes dominantes não podem mais controlar os dominados por via do recurso retórico aos "homens sagrados" do passado.

8. Mais do que isso: os dominados, agora em revolução e liberdade, podem, eles mesmos, servir-se dos textos [na verdade, de si mesmos!], para construírem ideologias e interpretações desses mesmos textos nas quais eles possam sentir-se representados, e por meio das quais mantenham sua liberdade, poder e dignidade.

9. No fundo, trata-se de um grande movimento político, que se serve de uma característica de textos para subverter a ordem política - em sentido amplo (por exemplo, também a da religião) -, mantida à força da instrumentalização da memória manipulada de homens sagrados, expressa em textos canônicos. Sem donos, os textos, agora, podem ser lidos - manipulados - por qualquer um, pelos empobrecidos, pelas mulheres, pelos gays e lésbicas, pelos índios, para sua libertação e construção de sua identidade.

10. O equívoco que vejo é que a salvação se dá pela mesma operação da perdição. Tomar do algoz o chicote e chicotear-se a si mesmo.

11. Para mim, isso não é libertar-se.

12. O sujeito mulher precisa dos textos para dizer-se mulher.

13. O negro precisa dos textos sagrados para dizer-se negro.

14. Agora, os gays precisam de Davi e de Jônatas para sentirem-se vivos e limpos.

15. Isso não é liberdade.

16. É uma falsa sensação de liberdade, construída, ainda, dentro da antiga cela. Os carcereiros são expulsos (são mesmo?), mas ninguém sai das celas...

17. Primeiro, penso que se deve dizer com todas as letras: danem-se os textos!

18. Não há nada que os textos tenham a dizer para mim e sobre mim. Quem eu sou, o que serei, o que eu faço, o que eu penso - não devo satisfação a textos, sejam quais forem, mesmo os bíblicos.

19. Segundo, assumir a atitude do "estraga-prazer" que Johan Huizinga descreve em Homo ludens - não jogar mais o jogo de política de textos, de referir-se com base em tradições de textos, como se nós fôssemos espelho necessário daquilo.

20. Terceiro - livres, política e ideologicamente dos textos, de sua instrumentalização - instrumentalização contra nós e instrumentalização que nós mesmos fazemos - voltar a eles e desconstruí-los.

21. Desconstruir aqueles textos é reduzi-los à sua dimensão histórica.

22. Não, não é simplesmente dizer que eles são históricos: é cavar seus escombros de cima e encará-los em sua discursividade situada, o que eles, lá e então, disseram e quiseram dizer para lá e então. 

23. É preciso ressuscitar o autor e acertar nossas contas com ele.

24. E deixá-lo partir.

25. Ele, que não está morto, não, senhores, mas é um espírito possessor em nossa cultura.

26. É preciso deixar esse espírito partir.



OSVALDO LUIZ RIBEIRO

PS. Filipe, os dois primeiros parágrafos de seu texto me arrancaram essa reação: quanto mais de mim não arrancarão suas dez páginas?

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