quarta-feira, 4 de abril de 2012

(2012/358) Bouzon e o Segundo Isaías - nossas inconclusas discussões sobre quando se escreveram os oráculos de Is 40-55


1. Bouzon foi meu orientador, na PUC-Rio, em 3/4 de minha tese de doutorado sobre Gn 1,1-3. E faleceu.

2. Além de meu orientador, estudei algumas disciplinas com ele. Uma delas, o Segundo Isaías.

3. Nossa, como discutíamos! Dois "cabeças-duras", ele e eu. Ele, mais velho, ainda mais. E eu não sei, então, quem estava mais agarrado a sua própria perspectiva, se ele, mais velho, se eu, mais novo, ele, devendo compreender o ímpeto dos jovens, eu, o orgulho dos velhos (detesto o termo terceira idade - daqui a um tempo, estarei velho, e quem me tratar por terceira idade, corto relações: velhice é prêmio).

4. Tínhamos muitas discussões, mas nenhuma tão longa quanto a questão de quando o Segundo Isaías - Is 40-55 teria sido escrito.

5. Bouzon estava sobre o ombro da tradição acadêmica: Is 40-55 era exílico, escrito na Babilônia, sob o efeito da teologia babilônica, em conflito e confronto com a cultura babilônica. E citava setecentos autores, seiscentos dos quais, naturalmente, alemães - alemão era a quarta língua sagrada, para Bouzon, depois de hebraico, aramaico e grego...

6. Teimoso qual uma mula, eu discordava. Acho que não, Bouzon. Compreendo os argumentos, mas não vejo sentido em nenhum deles. Para mim, Is 40-55 é pós-exílico. Grosso modo, claro: não descarto a possibilidade de alguma coisa - mas pouca e irrelevante - tenha sido escrita lá, na Babilônia, disso que agora esteja em Is 40-55. Mas o substancial, a temática e o conjunto, apostaria um braço não ser exílico, mas pós-exílico.

7. Nossa, Bouzon me olhava como quem estivesse diante de uma incompreensão com pernas: de onde isso saiu? Mas, Osvaldo, veja isso, e isso, e isso, e mais isso! Sim, Bouzon, eu vi e já revi, mas isso, e isso, e isso e isso não significam necessariamente o que vocês estão dizendo que significam.

8. E, nisso, não concordávamos jamais. Todavia, Bouzon jamais, sob nenhuma circunstância, tratava-me como um idiota ou me desprezava pelo fato de discordar. Terminávamos as discussões com a observação de que devíamos voltar ao texto, olhar tudo de novo.

9. Eu ainda lembro da recomendação, que Haroldo Reimer também sempre usava.

10. Será que estou errado? Sempre penso.

11. Bouzon não teve oportunidade de ler minha tese pronta.

12. Ela é uma das razões pelas quais não posso aceitar, sem resistir até a completa capitulação, que Is 40-55 seja exílico. "Criação".

13. Para mim, a recepção cristã - logo, na Teologia dos manuais e mesmo na exegese - está absolutamente equivocada sobre o seu significado nos textos da Bíblia Hebraica. "Criação" não tem absolutamente nada a ver com a criação do "Universo". Trata-se, apenas, da construção do ecúmeno - o território organizado sob a cidade-sede, o rei e o povo. Nesse caso, "criação", em Is 40-55 não é outra coisa que não a reconstrução de Jerusalém.

14. Entendo que quem leia isso estranhe, desacredite. O modo mais rápido de o "revelar" para quem não tiver desejo de ler a tese (disponível aqui) é remeter o leitor ao Sl 102,13-19. A meu ver, incontestável.

15. No v. 16, o salmista argumenta com Yahweh que ele deve reconstruir Sião - trata-se de Jerusalém, do Templo, do Complexo Templo-Palácio a que Bouzon invariavelmente se referia. Uma coisa que se deixa passar é que o projeto de reconstrução de Jerusalém não foi um projeto sacerdotal, mas monárquico. Foi apenas o desaparecimento do rei, Zorobabel, que, por razões não muito esclarecidas, pôs no poder, por volta de 515, Josué, sumo-sacerdote.

16. Mas voltemos ao salmo. O salmista quer a reconstrução de Jerusalém. No v. 18, vejam vocês o que está escrito: "isso" - isto é, a reconstrução de Jesualém, a manifestação da glória de Yahweh e o retorno da golah (v. 16-17), "isso se escreverá para a geração futura, e o povo criado louvará Yah" (v. 18). "Povo criado". O verbo, senhores, é bará, o mesmo de Gn 1.

17. A Bíblia de Jerusalém fica confusa. O tradutor vê o verbo bará, o mesmo de Gn 1. Não compreende. A Criação está lá, o que faz aqui? A saída que encontra é mudar o sentido do verbo - e traduz, como se fosse uma metáfora que o salmista usasse, "recriado", "um povo recriado", "criado de novo".

18. Bem, em certo sentido, sim, criado de novo. Mas isso não tem nada a ver com um Gn 1 anterior. Ao contrário, Gn 1 é que se trata, eu apostaria, disso que se escreverá para a geração futura (v. 18).

19. O salmista sabe do que se trata: reconstruir Sião, voltar o povo, criar o povo. A criação é, para ele a reconstrução do ecúmeno de Yahweh, aquele conjunto de rei (ben-adam), território e fronteira, povo e nação e deus, de que trata, a seu tempo e modo, Dt 32,8-9.

20. Se eu estiver certo, não é possível falar, pois, de criação, sem que ela esteja no horizonte de produção da narrativa. Quando se está na Babilônia, não se está na criação (cf. Sl 137!). E mesmo depois que se retornar, criação não é o "planeta", muito menos o Universo, mas, apenas, Jerusalém, o que se sabe em momento tão distante quanto Is 65,18 (sem as preposições pressupostas nas traduções).

21. Um elemento interessante para essa discussão é o fato de que, tão longe quanto o século III, quando a LXX era produzida, traduzindo-se o AT para o grego, o verbo bará foi traduzido por dois verbos gregos - poieo e ktizo, indistintamente. Kitzo é verbo grego para fundação de cidades.

22. Eu raciocino que, se os escritores de Is 40-55 empregam o conceito de criação como dada, isso deve significar que Jerusalém já está criada, isto é, construída, de modo que se deve estar além de 515. A ênfase no retorno do "povo" deve significar que se deseja o retorno dos recalcitrantes assimilados, já com a vida refeita em solo estrangeiro e teimosos de voltar. 

23. No horizonte de produção dos oráculos, todavia, ainda me parece mais historicamente plausível que a criação já tenha ocorrido, que Jerusalém já tenha sido construída (Sl 102,13-19) e que se trate, aqui e ali, apenas de o "povo" retornar por completo.

24. O que, todavia, nunca ocorreu integralmente.




25. Bouzon, meu amigo, você que está aí perto de Deus, pergunta pra ele e arranja um jeito de me dizer: quem estava certo, você ou eu?




OSVALDO LUIZ RIBEIRO

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