terça-feira, 3 de abril de 2012

(2012/354) Sobre a expulsão do Jardim do Éden e as leituras transgressoras


1. Desde que eu vi fervoroso defensor da leitura da expulsão do Jardim como metáfora para a "humanização" do homem pregar confessional e tradicionalmente Jesus como "salvador", na TV, às uma e meia da manhã de um dia soturno que pus minhas barbas de molho ao aproximar-me de teólogos "progressistas". Não há progresso onde só mudam as palavras, mas o movimento é o mesmo, as portas, a mesma, os gestos, os mesmos - aí, tudo é mais do mesmo, conquanto oferecido como novo.

2. Fim do capítulo um. Agora há pouco, todavia, lia o final de um texto de Haroldo Reimer, publicado em Inefável e sem Forma, ali, pela página 120-121. Nesse texto, Haroldo tratava, de forma transgressora, de ler o episódio da expulsão do Jardim como uma forma de "humanização", e, fazendo-o, apontava para a leitura junguiana que Elias Meyer Vergara faz da passagem em Fora do Jardim.

3. Pus-me a pensar. Haroldo fala da possibilidade de ler em chave positiva a "expulsão". Mudando, pois, a chave, reflete sobre a necessidade de o homem insurgir-se contra a ordem estabelecida, para alcançar seu destino de liberdade e autonomia. Oh, sim, não tenho a menor dúvida - trata-se de uma senhora mudança de chave de leitura.

4. E é sobre isso que quero falar. Que leitura é essa?

5. Bem, penso que uma coisa seja, de um lado, a compreensão do texto em sua dimensão histórica. De outro lado, outra coisa, completamente diferente, de natureza inclusive distinta, é a leitura de um texto a partir de uma agenda presente em meu nível de existência. O texto de Gênesis não me presta contas - não foi escrito para mim nem sabe de mim. Foi escrito para outros, com outros propósitos que aqueles que me agradariam.

6. Assim, arrisco dizer que, se alguém que lida com textos sem a capacidade de encontrar neles sua própria alteridade - e aqui insisto na intenção autoral -, julgaria correto dizer que esse texto não foi compreendido nos termos que se se projetou para a praça pública. Ler um texto, em primeiro lugar, é entender sua mensagem, nos termos em que quem a redigiu o desejou.

7. Depois de entender a mensagem que o próprio texto sustenta, posta ali que foi por seu autor histórico, posso - devo! - situar-me eticamente diante desse texto, julgando-o.

8. Gênesis 3, por exemplo. É um texto sacerdotal, constituindo combinação com parte da narrativa do dilúvio (a "javista"). Todo o sistema aí é sacerdotal - expulsão, aí, significa a perda da relação do judeu com sua divindade. O judeu que podia relacionar-se com suas divindades por meio de templos, altares, altos, sacerdotes dos altos, profetas, profetizas, sacerdotisas, imagens - tudo isso lhe arrancado à força pelo sacerdócio de Jerusalém, está, agora, afastado de Deus, expulso. Deve recorrer ao sacerdote, se deseja a bênção da divindade.

9. Não há, no nível histórico aí - nada de bom. Absolutamente nada.

10. Todavia, eu posso simplesmente olhar para essa narrativa e a transgredir, recusar-me a aceitar a sua disposição histórica. Posso, por exemplo, alegar que graças a Deus fui expulso daquele jardim!, graças a Deus "humanizei-me" em minha transgressão de homem e de mulher. Posso. Mas isso não tem nada a ver com o texto - isso não está lá. Está na minha nuca empedernida, na minha cerviz recalcitrante, de não me curvar, de não abaixar a cabeça. Nada disso está lá, no texto. Está, antes, em mim.

11. Posso ler assim. Posso fazer alegorias, metáforas, aproximações junguianas. Posso. Mas tudo isso está é em mim. Nada disso está no texto. No texto, além de sua polissemia nem sempre adequada a todos os voos alegóricos, apenas a sua intenção histórica de dizer o que tem a dizer.

12. Nenhuma daquelas pretensões: humanidade como marco de transgressão, autonomia como resultado de ultrapassagem crítica dos marcos institucionais - nada disso está no texto e na intenção do autor. Estão em meu mundo, em minha vontade de ser esse homem autônomo ou essa mulher dona de si.

13. De modo que o exercício de transgredir o texto, de dobrá-lo contra si mesmo, de adulterar sua intenção, de manipulá-lo ideologicamente, é, politicamente, legítimo.

14. Todavia, elaborarem-se metodologias de legitimação desse mecanismo no campo da "leitura", penso que são ou confusão metodológico-epistemológica ou já o resultado de uma perda completa de referências, que não é capaz de perceber a diferença entre estética e política, de um lado, e heurística, do outro.

15. Eu olho para Gênesis 3 como quem olha para sacerdotes cujos olhos me fitam com fome voraz. De cabeça erguida, digo-os: minha carne vocês não terão mais. Todavia, se eu desejo textos que falem de autonomia, de humanidade, não vou a Gênesis 3. Vou a autores críticos dos séculos XVIII e XIX, "pais fundadores" de um novo mundo possível.

16. Transgride-se aquilo contra que não se pode lutar definitivamente.

17. Não preciso mais transgredir Gênesis 3.

18. E decerto que inúteis se revela o querubim que guarda a porta do jardim.

19. Não quero voltar para lá.

20. Porque, criticamente, sei que aquele jardim é nada mais nada menos do que o Templo de Jerusalém - e que parte tenho eu com aquela pilha de tijolos?



OSVALDO LUIZ RIBEIRO

5 comentários:

Jones F. Mendonça disse...

Osvaldo,

Deixa eu ver se entendi. Você não nega que num estágio anterior (sumérios?)o mito tenha um caráter positivo (libertação, autonomia, individualização), mas daí a dizer que no Gênesis tal sentido esteja presente, nunca! É isso?

Peroratio disse...

A que você se refere com sumérios e estágio anterior? Fala de mito em geral ou fala desse mito do Éden?

Jones F. Mendonça disse...

Você diz que as aproximações junguianas dizem respeito ao que está no leitor, na sua vontade de tornar o relato aceitável.

Jung considerava os sonhos "alegorias dos processos psíquicos", "expressões simbólicas para o drama interior e inconsciente da psiquê".

Neste caso o relato do pecado original (colocado à parte da interpretação que lhe foi dada pelos sacerdotes) teria muito mais a ver com o inconsciente do que com uma vontade pessoal.

Não sei se fui suficientemente claro.

Peroratio disse...

Com relação a esse seu último comentário, não discuti se o "leitor" é ativo ou passivo (nesse caso "inconsciente") na apropriação de Gn 3 - eu me referi apenas ao fato de que o que ele lê (recebe, na verdade) não está no texto em si, mas com ele, com sua própria tradição.

V. Frari disse...

Oswaldo, na mesma linha de raciocínio, os relatos dos patriarcas poderiam ser textos legitimadores da posse da terra?

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