1. Uma coisa que os conservadores, confessionais, tradicionalistas - e não estou me referindo necessariamente aos maus conservadores, confessionais e tradicionalistas, mas, nesse caso, mesmo a gente boa e séria da fé normativa ou mística - não entendem é o sentimento de traição que acomete quem descobre que foi enganado pela catequese. Pois aqui quero falar, para além desse sentimento de traição, de um outro, semelhante - o sentimento de traição que eventualmente sentirão gerações de jovens, depois de passada esse "paradigma" da instrumentalização estético-política de textos (também [e principalmente] os bíblicos).
2. No caso da catequese, a sua derrocada foi fácil. Não de ser finalmente estabelecida, mas a percepção de que toda ela era uma grande "fraude" histórica - ou, para ser menos dramático, um acúmulo de alegorias, umas sobre as outras, sem nenhuma base que não a crença de que a alegoria funcionava. Bastou que se desse a Bíblia ao povo e, pelo processo natural de ler, percebeu-se que o que se dizia nas pregações não condizia com que ia escrito. Trezentos anos e ruiu a coisa toda.
3. As alegorias só funcionava até que a fé desmaiasse de cansaço. E, cansada, a fé perdeu a força para continuar vendo a miragem das doutrinas flutuando sobre os textos bíblicos. A crítica leu os textos bíblicos de forma filológica e histórica e, definitivamente, revelou que não há muita doutrina da Tradição que se possa dizer sustentada pelo sentido histórico de alguma passagem das Escrituras.
4. Lembro-me de ter aprendido que se eu, pai de família, me convertesse, toda a minha família iria converter-se, de algum modo "sobrenatural", porque estaria escrito que "crê no Senhor Jesus Cristo e serás salvo, tu e a tua casa". Sim, bom menino, cri nisso. Até que aprendi como os antigos pensavam e viviam, e entendi que se tratava de um modo sócio-cultural: o pai de família decide o destino de todos de sua casa: então, se ele se torna cristãos, todos, indistintamente, se tornam. Nenhuma relação com a fé subjetiva e o rito de levantar a mão, "aceitando Jesus".
5. Eu me senti profundamente traído. Não porque os pregadores não sabiam disso - mas justamente porque sabiam! Claro que não se trata desse caso isolado, mas da multidão de casos. Ainda mais traído, porque, quando você descobre os sentidos históricos, e os quer compartilhar, é tido por herege, subversivo, insubmisso, esses adjetivos nada elogiosos na cultura da fé. A dor dos primeiros dias converteu-se numa indiferença ao poder, uma indisposição aos jogos eclesiásticos, conquanto a dedicação e o amor às Escrituras tivesse permanecido, e até hoje. Mentiram-me sobre tudo na Bíblia, os homens da Igreja: mas ela, a Bíblia, ela não me mentiu jamais - conta-me tudo, até seus próprios gravíssimos problemas. Todavia, a ela amo não pelo que ela diria, mas pelo que ela é, diga-me o que tiver para dizer.
6. Não estou só nesse sentimento de traição. Uma enorme fila de gente sofre a dor dessa traição. Alguns, porque vocacionados ao pastorado e a isso determinados, sofrem calados a traição, engolem a seco, e seguem na mesma picada, repetindo os conteúdos em razão dos quais se sentiram traídos. Outros, perdidos, correm daqui para ali, sem saber ao certo que passo dar, o que fazer, sem apoio de nenhum canto. Recomendo-lhes o amor e o colo de um amor, única cura que encontro - o que tem a vantagem de ser também bíblico!
7. Todavia, pressinto que se avizinha, dentro de duas ou três gerações, uma nova geração de traídos. Explico-me.
8. Desde pelo menos a virada do século XIX para o XX, a objetividade exegética, o método, a perspectiva histórica e crítica do acesso aos textos foi severamente atacada. Criou-se uma onda gigantesca de reação aos acessos filológicos clássicos e histórico-críticos. Não me refiro à reação conservadora eclesiástica, anterior, instalada desde 1850 com violência retórica no coração da Europa. Refiro-me a uma reação de igual modo conservadora, mas não eclesiástica, mas, dessa vez, "universitária".
9. Seria essa onda de desmaterialização e desfundamentação de textos uma contra-reação ao marxismo? Seria a frente "liberal" de um movimento tectônico de abafamento do ímpeto "materialista"? Não nascera o "marxismo" da crítica? Não se poderia abafá-lo, sufocando-a?
10. Seja como for, os textos foram desligados de seus contextos históricos. Os autores foram mortos. O sujeito tornou-se rei e demiurgo. Inventaram-se os acessos programaticamente polissêmicos, ao mesmo tempo em que se lançavam projéteis bélicos contra as casamatas críticas. Naturalmente que não se deu o ataque nos termos das armas da crítica, mas do demérito dela: são bolhas de sabão, e dava-se de ombros...
11. Entramos na era de fazer dos textos o que desejamos. Há o risco da babelização, de modo que criaram-se regimes de dizer que o trabalho de manipulação fundamentalista e "não-conforme" dos textos era, aí, sim, equívoco: não se pode manipular textos! (discurso de Eco, por exemplo, mas não só ele). Para substituir a descrição do projeto de desmaterialização de textos como reinado do leitor, inventou-se de dizer que se trata do texto em si, de sua articulação polissêmica. Autores mortos, a liberdade libérrima da confusão babélica de leitores "criminalizada", resta ao programa o império dissimulado de leitores na construção alegadamente textual de sentidos utópicos e discursivos.
12. Nada disso (me) convence. É o leitor. É ele que se decide por fazer do texto o que ele quer que o texto diga. Projetam-se desejos, utopias, sonhos, programas, destinos, tudo isso, nos textos, e fazem-se os textos dizer o que vai na boca e peito dos leitores. Ensina-se a fazer isso em faculdades!
13. Para que todo o grande teatro das leituras estéticos-utópicas não seja interpretado como o que é, dissolve-se, sempre, a crítica, ampliando, sempre, a acusação, primeiro, de positivismo e, finalmente, de fundamentalismo.
14. Sim, no fundo, o movimento bélico se dá no campo "moral" e "psicológico"...
15. E uma legião de alunos vai sendo formada, no mundo, nos termos de um regime de leitura em que eles se projetam no texto, fazem ali seu ninho, como se lá estivesse isso que são e fazem. Eles creem nisso. Desarmados, aprendem assim, como quando se fazia catequese e os ensinava que Deus mandara matar cananeus, porque cananeus são naturalmente alvos preferenciais da matança divina e justa.
16. Não é que tenham intenções políticas e éticas necessariamente reprováveis. Muita gente envolvida no programa mundial de desmaterizalização dos textos tem intenções de paz e solidariedade. E tanto, e têm nisso tanto afeto, que não pensam duas vezes em usar textos para isso. Não é de textos que se trata - para eles - mas de seu projeto de mundo: e para isso, usam textos.
17. Mas, talvez, não percebam que, usando textos para isso, projetando-se neles, a despeito do que eles mesmos, os textos, diziam e faziam - por exemplo, fazer de Gênesis 1 um texto de libertação!, de Gênesis 3 um texto de humanização! -, findam por usar (e esse é o perigo!) seus alunos, fazendo-os, primeiro, projetarem as utopias professorais nos textos e, depois, deixando-os livres para projetarem suas próprias utopias lá.
18. Sem a consciência de que isso é o que é: alegoria, apropriação polissêmica de estruturas narrativas - mas contra a expressão de consciência que naquele texto, um dia, se materializou.
19. Pergunto-me o que acontecerá com essas gerações quando descobrirem que não lhes contaram a história toda, que lhes ensinaram que "ler" era mais ou menos como quem toma a terra do outro, morto, para ali construir sua própria casa e herança, ou como subir ao monte sem nome e lá fincar a sua própria bandeira? Quando descobrirem que lhes mentiram (será mentira?) que não haja sentidos históricos em textos ou que eles sejam metodologicamente irrecuperáveis, logo, irrelevantes...
20. Temo, e se trata apenas disso, medo, do que acontecerá com essa multidão de jovens, homens e mulheres, quando se derem conta de que foram traídos.
21. Oxalá que eu esteja errado, que não haja aí nenhuma traição, que meus olhos de quase meio século é que me enganam, minha paranoia de crítico é que desenha fantasmas no ar... Honestamente: tomara eu esteja errado.
22. Todavia, cada vez que eu leio livros e artigos que "ensinam" aos leitores a libertarem-se das amarras da "objetividade" da leitura, e a expressarem-se na sua liberdade estética e política, sem qualquer advertência quanto ao perigo metodológico de se desprender da realidade - princípio do prazer -, vejo-me tomado da impressão de que algo muito estranho acontece à minha volta.
23. Ou, talvez, dentro da minha própria cabeça.
OSVALDO LUIZ RIBEIRO
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