quarta-feira, 21 de março de 2012

(2012/320) Da jornalismalização, da narrativização e da suspensão da crítica na chamada Pós-modernidade


1. Todos os termos do título desse post foram usados em seu pior sentido. E de propósito.

2. Com jornalismalização eu quis me referir ao fenômeno de transformar a aproximação ao "real" numa espécie de jornalismo (de quinta categoria) - mais ou menos como o que costuma frequentar (com exceções) a mídia em geral. O que tem de reportagem mal feita na TV é um constrangimento.

3. Esse jornalismo de quinta e essa jornalismalização do olhar humano contemporâneo sobre o real traduz-se na explosão de imagens, que você pode olhar por todos os ângulos, desde que permaneça com os olhos fixos na... imagem. Não se pergunta pelo significado da coisa: apenas se mostra a coisa, como se mostrar uma coisa fosse a mesma coisa que olhar criticamente para ela.

4. Essa jornalismalização diria, por exemplo, que o Sol gira em torno da terra, tanto mais quanto fossem entrevistadas 300 pessoas que por ali passassem. O bancário José Torquato Grana diria que ele vê todos os dias o Sol nascer e cruzar a janela de seu quarto, enquanto ele está paradinho em sua cama. A balconista Maria das Dores Nazaré comentaria que ela acha interessante que o Sol caminhe até o meio do céu, como a indicar que Deus está no topo, e, depois, então, comece a descer, até sumir do outro lado, como é o lugar do homem. E Arquelau de Canudos Togado, doutor pela Deutsch Universität Postmodernen - o "especialista" da bancada, ratificaria, com discursos, a impressão estética dos entrevistados. "Até ontem", ele narrativizaria, "acreditou-se que a Terra girava e se movia - e até um foguete à Lua se mandou com essa ilusão, veja você, a força dessa hipnose!"...

5. Com narrativização eu quis me referir ao fato não de que tudo o que é humano é capturado em discursos e narrativas, porque é assim que fazemos, mesmo, mas ao fato de que tudo isso, então, seja tratado como se fossem seus conteúdos meras e apenas narrativas. Dizer que tudo são narrativas é fazer de tudo um romance, um conto. Ora, do conto se pode dizer que se gosta ou não - mas que sentido faz dizer que ele esteja... errado?

6. Com esses dois "programas" - jornalismalização medíocre e narrativização teórica da aproximação humana ao real, seja a Natureza, seja a Sociedade, o que se obtém? Digo-vos: a suspensão da crítica. Nesse sentido, tome-se a Modernidade tardia como eixo, dobre-se sobre o período Pós-Moderno o período Pré-Moderno e se verá a coincidência - aqui, a ausência de crítica pela operação da força e violência, lá, a mesma supressão da crítica pela jornalismalização e narrativização do olho humano.

7. Alguém já deve ter dito isso: duvido que eu seja o primeiro. Num mundo de milhões de livros publicados e disponíveis, a chance de eu dizer algo por primeiro é remota. Direi, todavia, que tomo a defesa da pós-modernidade como uma programática anulação da crítica - por isso também o livro A Bíblia e seus Intérpretes, de Augusto Nicodemus Lopes, utiliza-se da argumentação pós-moderna para "calar" a crítica bíblica e teológica.

8. Com essa referência não quero direcionar minha escrita, aqui, à teologia e, muito menos, ao A Bíblia e seus Intérpretes. Apenas registrei como é instrumental o pacote, e tanto que, a despeito de nem de longe enamorar-se dela, um teólogo conservador pode "utilizá-la" para convencer seus seguidores de que a crítica é um vírus de arrogância, uma ilusão da mente...

9. Eu me dirijo, antes, à esquerda, aos até-ontem-criticos, não conservadores, aos cidadãos da República, que, todavia, enamoram-se da Pós-modernidade naquilo que ela tem de mais nocivo - a acritização das relações.

10. Domenico Losurdo mostra, em centenas de páginas - irrefutáveis? -, que a batalha do século XIX foi entre, de um lado, os argumentos "materiais" (argumentos profético-judaico-cristãos, de um lado, e argumentos "marxistas" de outro [estes, em última análise, profético-judaico-cristãos]) e, de outro, os argumentos não-fundacionais (cf. Losurdo, Nietzsche, o rebelde aristocrata). Todavia, os argumentos não-fundacionais de Nietzsche, por exemplo, Losurdo revela de modo inquestionável, são aplicados apenas aos "outros", mas não a ele próprio. Se, de um lado, contra os outros, Nietzsche pode dizer que não há fatos, quando se vê contrariado pelo caminho da sociedade, argumenta, exasperado, que a sociedade vai desprezando todos os fatos. Há uma esquizofrenia retórica em Nietzsche, que Losurdo explica de modo simples: há dois discursos, um para dentro, outro para fora. Para fora, Pós-modernidade e não-fundacionalismo, para dentro, chão de ferro, verdade, fato. Trata-se, o tempo todo, de Política.

11. Também isso acontece nos discursos pós-modernos. Para fora, alega-se isso: não há fatos, são fundamentalistas os que assim pensam. Nesse viés, jornalismalização, narrativização. Todavia, para dentro, no fundo, não é assim que pensam. No bunker de sua consciência, um fato permanece - há o fato duro e inabalável de que não há fatos.

12. O efeito é produzir uma onda de desmaterialização do real e de acritização dos olhares. Levas e levas de estudantes leem compulsória e compulsivamente textos dessa natureza, e o resultado é adquirirem esse pressuposto acrítico. E a crítica se transforma em estética do gosto.

13. Desapercebe-se que a Pós-modernidade seja um instrumento da gestão neoliberal do planeta - ou do Ocidente, ao menos? Desapercebe-se que, quando se está em desvantagem militar, reage-se com palavras? Ora - tiraram-nos as palavras, transformando-nas em contos - de modo que estamos vivendo dias em que não se tem nem poder material de reação à hegemonia do capital nem mais as palavras que poderiam ser usadas com alternativa agônica. Resta-nos a masturbação estética! E eu desconfio que não se está aí sob o efeito de uma onda "natural" - acho que o "Mercado" e a "Economia" encontraram esse espaço de legitimação e de enfraquecimento das reações sociais. E, todavia, entre nós, vítimas, ecoam as loas e os louvores a isso. A despeito de escreverem-se reprovações contra o capital, redigem-se louvores à Pós-modernidade...

14. Sou pessimista - ou talvez seja melhor dizer que eu estou pessimista. No campo religioso, os dias que nos esperam à frente podem ser terríveis, com o andar da carruagem e o espetáculo grotesco da fé. No campo acadêmico, paralelamente àquele mar de alienação epistemológica e crítica, paralelamente ao jogo de brincar de que o pastor é Deus e o apóstolo, Deus de Deus, a acritização do pensamento.

15. Armagedom. Mas não aquele que a imagética cristã espera: outro, a manadização dos homens. Um retorno de quantos milhares de anos na História?

16. Resistir. Sinto-me fraco. Resistir. Na ausência da força, resistência. E isso não permitirei que me seja tirado.




OSVALDO LUIZ RIBEIRO

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