terça-feira, 20 de março de 2012

(2012/315) Sobre a preocupação de alunos a que eu ouça seus sermões


1. Não tem acontecido com tanta freqüência quanto há um ou dos anos e daí para trás. Uma vez ou outra, só, ouço o comentário. Há algum tempo, era mais freqüente. Todavia, sempre ouvi, invariavelmente todo semestre, o seguinte comentário de meus alunos: "queira Deus que você não entre na igreja quando eu estiver pregando".

2. E ríamos... O comentário era sempre uma reação divertida ("desesperada") dos alunos, depois de uma série de aulas sobre a Bíblia Hebraica, sobre Hermenêutica e sobre, até, Teologia. Não é culpa minha que as doutrinas - todas e de quaisquer igrejas - tenham sido construídas por meio de alegoria, tradição e autoridade. Culpa nenhuma. Não é "problema" meu. Diz respeito a mim, porque faço parte dessa tradição - mas não me vá culpar pelo fato de eu tentar ser um bom profissional.

3. Ora, uma aula técnica de Exegese, de Hermenêutica e de Teologia (se não for aula de doutrina disfarçada de aula de Teologia) haverá de pôr o aluno em contato com a "realidade". O primeiro grande teólogo do Cristianismo - Justino - dizia com todas as letras que a leitura do Antigo Testamento tem de se alegorizada. A paranoia bíblica da Reforma (uma dissimulação) é que forçou o clero a passar a ensinar que as mesmas doutrinas pregadas eram, todavia, agora, "bíblicas".

4. Quando você mostra isso ao aluno, e ele se recorda do que faz em seus espaços de comunidade, imagina o que o professor pensaria se o escutasse, quando ele prega. Então, eis seu raciocínio: "tomara que ele nunca entre na igreja quando eu estiver pregando". E, uma vez que o ambiente é de absoluta fraternidade e liberdade, acabam tendo a coragem de pôr para fora esse pensamento: "Deus me livre de você entrar na igreja quando eu pregar!".

5. Essa declaração, para além de ser uma reação psicológica - tem duas implicações, se não me engano:

a) não se vai fazer força um milímetro para mudar a pregação - não interessa o que se aprendeu (na verdade, se ouviu, porque, o que se aprende, se assimila), vai-se pregar o que a tradição ensina;

b) a presença das ovelhas não constrange: fazer com elas, tudo bem, com o "Osvaldo" é que não dá.

6. A primeira tem implicações tradicionais - o crime protestante/evangélico é ter demonizado a tradição e ter forçado os crentes - e também o clero - a dizer que sua fé é bíblica, não é tradição: o que é totalmente não-verdadeiro. O problema, então, é compreensível: o aluno, no púlpito, está em seu mundo de tradição e só pode referir-se a essa tradição pelo desvio dissonante de dizê-la "bíblica". Uma lástima, mas, vá lá. É a esquizofrenia protestante-evangélica. Não sei se terá cura.

7. Mas o item 5.b é grave. Tem implicações éticas. Tem a ver com a capacidade intelectual do ouvinte. O aluno pensa assim: "se o Osvaldo me ouve, descobre o que estou fazendo, e não dá pra continuar. Com ele não dá pra fazer. Mas com as ovelhas dá, porque elas não sabem o que eu estou fazendo de fato". Parece-me um problema ético - o pregador devia cuidar das ovelhas, não manipulá-las. Mas a presença delas, das ovelhas, não o constrange - com elas pode.

8. Não se trata, certamente, de mim. Acho que os alunos pensam isso de muitos professores. De outros, não: talvez até os convidassem para pregar. Mas quando se trata de professor crítico, a situação se torna constrangedora. E, cá entre nós, não sou a única personagem crítica do mundo teológico.

9. Posso, pois, relativizar a minha pessoa. Mas tenho dificuldades de relativizar o caso seminarista versus ovelha. Por mais que se tente dourar a pílula, um deles sabe o nome do jogo, mesmo quando, ao sair da formação, diplomado, finja que não sabe o que está fazendo. Sabe. Só não pode confessar nem para si nem para Deus. Quanto mais às ovelhas.

10. Resta torcer não entre lá um espírito de porco.

11. Mas, depois de formado(a) e pastor(a), se entrar, é fácil tratar: "herege!", e tudo está resolvido.

12. Mas fiquem tranquilos os que ainda têm esse medo: a hipótese de me verem entrar pela porta é muito, muito, muito remota. E, se eu eventualmente entrar, abrirei minha Bíblia e lerei um salmo, perguntando-me que artigo há ali que pode ser publicado em Qualis B+...



OSVALDO LUIZ RIBEIRO

4 comentários:

IGUAÇUANO ATENTO disse...

KKKKKKKKKK
Não poderia deixar de comentar o tópico 7.
Certa vez tomei conhecimento de um grande lider da associação que convidou o Osvaldo para pregar e ele reagiu assim: Osvaldo recebeu a oportunidade, leu ó texto bíblico que lhe propuseram, feixou a abíblia e disse - não acredito em nada disso - O líder que o convidou sentiu um frio na espinha, mas no decorrer de suas reflexões, disso o pastor que o convidara - Nunca ouvi uma mensagem tão inspiradora quanto o daquele dia.
Bem Osvaldo, realmente a coragem de expor para o seu público, ou para o público dos outros, o seu pensamento é um ato de fidelidade com aquilo que acredita. Infelizmente muitos ao assumirem suas missões, vestem uma capa, escondem suas anotações acadêmicas e seguem a tradição.
Acredito que todos os teólogos passam por essa crise de um dia ter que decidir: fico com a tradição ou com o que "aprendi".
Um forte abraço.

Peroratio disse...

Eu não me lembro disso, não. Não diria que não aconteceu, porque minha memória se apaga, não fica quase nada, só o que for sumamente bom ou sumamente ruim. Não lembro. Se foi assim mesmo, no início, o pastor deve ter ficado numa situação complicada... Uma vez eu preguei numa igreja e disse uma coisa lá que não lembro bem, uma caso da história da igreja, um caso histórico real, mas que as igrejas contam de outro modo. Aí, quando ele me levou ao ponto do ônibus, brigou comigo, porque, agora, teria meses de trabalho para explicar o que eu disse. Posso fazer? Se metade do tempo que se canta e se ora, se estudasse, não ia precisar...

NELSON LELLIS disse...

Osvaldo, certo dia um amigo músico, com seu violão acordoamento de nylon, disse: "Violão de nylon é assim: você passa a metade do tempo afinando e a outra metade tocando desafinado".
O violão com acordoamento de nylon não dá precisão, mas o som é maravilhoso!
Agora, quem não entende de música, ouve como se nada estivesse errado. Se a música for batida, menos ainda.
Alguém que conheça o mínimo, perceberá, que a cordinha Mi (E) mentiu (expressão nossa, de músico).

Lellis

Peroratio disse...

Lellis, meu amigo - não ache que falo dos fiéis, que não sabem. Falo dos pastores, que sabem. Mesmo assim, há multidões de pastores que não sabem. Parece que a alma do evangélico vibra nesse diapasão: não saber. E os que sabem, tocam a nota que lhes convém. É bom que não se saiba. É bom deixar os violões com nylon.

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