sábado, 17 de março de 2012

(2012/295) Losurdoteca - o que já li, estou lendo e está na fila: Domenico Losurdo, historiador-monstro, historiador com H maiúsculo

1. Dos nove livros de Losurdo publicados no Brasil, tenho e li seis. Faltam três, dos quais um anda a vir pelos Correios. Uma "biblioteca" fundamental para compreender a história e a política dos séculos XIX e XX, sem contar, claro, o nosso próprio século.

2. Adoro Losurdo. Ele não escolhe temas periféricos - ele vai no centro do problema. Ele enfrenta, no campo da História - inapelável campo - a "recepção ectoplasmática" das questões fundamentais da Política. Desmonta tudo que aparece pela frente, contaminado que esteja pelo louvaminhas "liberal" ou "neoliberal" (aqui, crentes conservadores já se interessariam em ler: é contra o "liberal", é bom!, com o que provam que não entendem é nada de coisa nenhuma [Liberalismo, em Losurdo, é questão político-econômica, não tem nada a ver com Teologia] - e, nesse sentido, a Teologia, com raras exceções, é profundamente liberal).

3. Os filósofos do açúcar são desmontados impiedosamente. Com respeito - mas sem tergiversações: Vattimo, Habermas, Foucault, para citar aqueles "não-fundacionais" que mais circulam entre nós, que, no conjunto, com mais ou menos ênfase, Losurdo trata, ao mesmo tempo, como "idealismo exaltado" e "empirismo absoluto". Uma ironia: mas faz sentido - tratar a realidade a partir da análise das "normas" e dos "valores", mas sem recurso à sua materialização concreta no mundo real é, para todos os fins, tornar o mundo "ideal" das normas e dos valores o mundo real, um "empirismo absoluto", porque protegido da confrontação, mas, apesar disso, falso.

[Aliás, Losurdo diz que Vattimo, recentemente, abandonou o barco das "hermenêuticas difusas": "a plataforma teórico-política sugerida a seu tempo por Vattimo – mas que o próprio Vattimo coloca em discussão hoje – parece-me insustentável de cada ponto de vista" (grifo meu - entrevista de Stefano Azzará com Losurdo, a ser divulgada em Peroratio em breve). Desconfio que a notícia não chegou, ainda, nos círculos vattimonianos brasileiros.]

4. Sua leitura de Hegel é esclarecedora. O fato como vai nos antípodas, para lançar luz sobre as declarações do filósofo: ir a Adam Smith para elucidar o sentido de declarações político-filosóficas de Hegel é um método eficiente. E essa é a marca característica de Losurdo: citar, citar, citar, recorrer à nuvem de testemunhas em torno dos autores que comenta. Não se trata de olhar para eles em sua própria redoma, mas de lançá-los à rua, à luz do dia, para enfrentamento público. É pôr tudo à luz do Sol...

5. Não é o que fez com Nietzsche? Centenas de citações de Nietzsche, talvez milhares, mas, ao mesmo tempo, centenas de citações de contemporâneos, alinhados ou desalinhados, com cujo movimento, à guisa de espelho, se reflete tanto o que o filósofo dizia quanto como era interpretado. Magnífica metodologia. Obra adjetivável.

6. Eu adorei Losurdo desde a primeira coisa que li dele, o artigo sobre as origens estadunidenses do nazismo. Depois desse artigo, varri a web atrás de coisas sobre esse historiador, que ainda acredita na história. Os historiadores andam a tornar-se literatos, e isso é bom para a Literatura, mas trágico para a História. Losurdo é Historiador. É materialista, marxista, acredita na facticidade dos fatos, na sua objetividade material e histórica, como todos, aliás, sendo que os que dizem que não acreditam dizem-no da boca pra fora, mas, quando se está na vida real, todos acreditam. No fundo, essa história de negar os fatos é uma síndrome da história ocidental, que aprendeu a trocar o mundo real pelo mundo de faz-de-conta dos deuses, seja adorando-os, seja lutando contra eles. Mesmo quando o sujeito vai para a academia e julga que está acima das idealizações míticas do "povo", eis que as tripas ainda lhe pregam peças, e ele sai a inventar mundos de faz-de-conta, ou a arrebanhar argumentos para fazer do mundo real uma sombra quimérica de coisa nenhuma.

7. O curioso é ver acadêmicos supostamente de "esquerda" entregarem-se a esse tipo de crença, que, para todos os fins, é instrumento da direita para a desmaterialização dos argumentos contra a opressão e o império do capital sobre os homens. Quando os supostos acadêmicos de "esquerda" aceitam a tese da ectoplasmacidade do real, conscientes ou inconscientemente entregam ao poder econômico a única forma de resistência possível a quem não detém a força de exércitos - a palavra. No atual modo de crença - a pós-modernidade -, onde só existem palavras, elas perdem o efeito. Se você detém a força das armas e do capital, não há nada mais a ameaçá-lo, porque, e isso é histórico, contra a força bruta só resta o emprego das palavras revolucionárias, as palavras de resistência, tomadas como expressão de direitos materiais usurpados pela ganância e desumanização dos homens. Mas, desmaterializada a matéria, as palavras tornam-se o quê?. novela?, cinema?, eco no vazio? E os acadêmicos ditos de esquerda encantam-se com isso, com essa novidade... São - mesmo - de esquerda?, ou perderam-se, já, em seu louvor à pós-modernidade?

8. Outro dia, um colega me disse que não aceita submeter-se ao discurso crítico sobre o real, que não aceita que seu discurso seja avaliado à luz do real, porque nenhum "acadêmico" vai dizer o que ele deve ou poder dizer, em que ele deve crer... Que argumento! Não interessa o que seja o real: eu direi isso e pronto. Bravo! Quanto coragem e ousadia! O cavalo decide que não há abismo e salta - mas só porque acredita que não há abismo...

9. Mas eu amei Losurdo porque, como Edgar Morin, ele acredita na materialidade. Há uma década escuto meus amigos mais chegados, ainda que brincando, tratarem-me como "positivista". Talvez seja por conta, de um lado, de minha fé na matéria e na objetividade metodológica de pesquisa, e, de outro, em meu não engajamento social e político. Uma vez que meu discurso é de "gabinete" e sala de aula, foram traídos, quando aproximaram-me de Comte, e não de Marx. Para o expressar numa frase arriscada, pela concisão: não acredito na materialidade/objetividade para poder evitar as greves, senhores, mas para defendê-las.


11. Obrigado, Losurdo, por nos brindar com esses volumes de terra na cara da gente, por sacudir de nós esse encantamento ectoplasmático de descrer da materialidade da vida: quando vi você, meu amigo, na penumbra de um artigo, identifiquei uma alma gêmea. Mas uma alma gêmea sobre um altíssimo monte - ao passo que eu caminho, ainda, lesma, entre as pedras do vale.






OSVALDO LUIZ RIBEIRO

Um comentário:

Anônimo disse...

Ô, Osvaldo,
a gente fica olhando pr'aquela fotinha que aparece no início dos seus posts, aquela de quando você lecionava dispensacionalismo escatológico na batista, e quando vê essa que você postou pensa que é o Haroldo Reimer (rsrsrsrs)!
Ainda vou conseguir ler tudo isso que você nos recomenda...!
Abração!

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