sábado, 17 de março de 2012

(2012/294) Por que a adoração se tornou rito exclusivo de relação com o divino?


1. Quero perguntar de onde saiu a ideia - e, naturalmente, a prática - de tratar o rito litúrgico, a adoração, como a única forma de "agradar" a Deus - como se o que Deus quisesse o tempo todo fosse "adoração"?

2. Para tentar uma resposta, vou ao passado - na tradição judaica. Há mais de 2.600 anos, Judá era uma multifacetada zona religiosa. Há mais de 2.750, também Israel. À época, então, havia pelo menos três grandes formas de relação com o divino - o sacerdócio, a profecia e a sabedoria.

3. O sacerdócio, basicamente, praticava o rito de aplacamento da divindade. Sacrifício agrário, depois, cruento, e, finalmente, as canções. É aqui, no âmbito sacerdotal, e só aqui, que se pode falar, propriamente, de "adoração".

4. Na profecia, não. Não havia, propriamente, "adoração", mas pregação/denúncia contra a opressão real contra os pobres. Ali, culto era a justiça ao órfão, à viúva, ao estrangeiro. Adoração era caridade. Mais nada.

5. Finalmente, a sabedoria. Aqui nem se pode falar nem de culto nem de justiça - só de sabedoria, reflexão, crítica. O divino aí manifestava-se no gesto místico de enfiar a mão no ventre da realidade, e desnudá-la - uma iconoclastia que anteciparia a Teologia Negativa.

6. Pois bem - liturgia/adoração de um lado (sacerdotes e templo); justiça e cuidado de outro lado (vilas, campo, cidades) e, finalmente, crítica e questionamento, ainda de outro (em casa - ou nas "ruas", onde a Sabedoria dá a sua voz). Três formas de se pensar a relação com o divino.

7. Hoje, todavia, permanece apenas a adoração. Não é que eu esteja dizendo que falta, também, a justiça e a crítica. Não estou dizendo que tem de haver um saladão - porque também não havia saladão no passado.

8. Estou perguntando isso: em nome de que(m) se assumiu que a adoração é o modo único e exclusivo de relacionar-se com Deus, e mais, que é isso que ele espera? Se você é sacerdote, faz sentido que entenda que é a "liturgia" o veículo de agradar a Deus - dez dias cantando e Deus fica nas nuvens de felicidade. Mais ainda: uma vez que os pastores entendem-se a si mesmos por meio do modelo sacerdotal (o que para mim é uma desgraça histórica), é compreensível que tomem a "adoração" como seu ofício.

9. Quero saber é que fenômeno e que poder acabaram com as outras alternativas enquanto alternativas. 

10. Também não estou falando de uma liturgia "adequada" em face de uma inadequada. Não estou falando de uma liturgia de flautas, piano e violinos, bem europeia, em oposição a uma liturgia esculhambada. Não falo do modo - falo da coisa em si: quem decidiu que é a liturgia o valor maior e único?, que teólogo divulgou a "notícia" de que Deus passa os dias no trono esperando que lhe cantem canções?

11. Quem decidiu que alguém que se ponha a investir sua vida na caridade ainda tenha de, antes ou depois, meter-se em liturgias como dever?, como se o que Deus quisesse mesmo é canções, em lugar de caridade?, como se a caridade fosse "troco"? 

12. Ou quem decidiu que a crítica, a reflexão, a iconoclastia fundamental encontre sua razão de ser apenas em e após a adoração, a liturgia? E mais, que uma boa liturgia aplacaria tanto a alma que cessariam - devem cessar! - as questões?

13. Que poder é esse? Quem lhe deu tanto poder? Quem se arroga o direito de impor a tantos seu próprio modo de operação, sua própria forma de satisfação pessoal, sia própria estética, sua própria política?

14. Uma pista: os sacerdotes tomaram o poder 500 anos antes de Jesus nascer. A despeito de ter sido possivelmente um ferrenho crítico do Templo, o próprio Jesus foi interpretado a partir de elemento fundamental do Templo: o sacrifício. Os autores do Novo Testamento estão carregados de valores e práticas sacerdotais - Pedro, por exemplo ("sacerdócio vivo"). E, a cereja do bolo, Roma e a liturgia do Império, Roma e o enfrentamento da crítica, seja a crítica profética (divina), seja a crítica sapiencial (cética).

15. Faz sentido: como os sacerdotes venceram e permanecem no poder, é compreensível que imponham a todos a sua forma privilegiada de "serviço" a Deus - o templo, a liturgia, o sacrifício...

16. Aviso aos navegantes: não sou sacerdote. Aos sacerdotes, as coisas de sacerdote. 

17. Penso que me vai agradando o modo sapiencial de ser: a reflexão, meter a mão nos intestinos da realidade, comer pão, beber vinho e...

18 ...

19. Bel, corre aqui, amor!



OSVALDO LUIZ RIBEIRO

PS. Dedico esse post ao meu amigo goiano, João Neto, porque gosto dele, porque ele me convidou para a banca de mestrado dele (ainda que a de qualificação, mas tá valendo), porque ele me deu espaço na revista da professora dele, e porque ele é o João, essa "coisa" que aprendi a amar - a despeito de, às vezes, ele ter umas recaídas conservadoras de dar dó...

Nenhum comentário:

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...

Sobre ombros de gigantes


 

Arquivos de Peroratio