terça-feira, 20 de março de 2012

(2012/313) Resposta à reação de Elisa a meu texto "A Batalha de Deus", sobre o conflito midiático IURD [Record] versus IMPD - porque não se trata de estudar a matriz religiosa brasileira, mas de regulamentá-la

1. Elisa Rodrigues, doutora em ciências da religião pela UMESP e doutoranda em ciências sociais pela UNICAMP, uma amiga, comenta, no facebook, meu texto sobre "A Batalha de Deus" (IURD [Record) versus IMPD). Se você ainda não leu o texto, antes de prosseguir, talvez deve fazê-lo. Eis, então, o comentário de Elisa.
li seu post e não posso deixar de dizer algumas coisas: as sugestões de regulação fiscal para as igrejas, submissão às leis trabalhistas no caso da regulamentação das relações de trabalho de pastores, ministros e outros, enfim, as restrições que apresentou como possibilidade de refrear os abusos cometidos por algumas autoridades eclesiásticas são bem interessantes, mas não recobrem ou pelo menos não ajudam a pensar o campo religioso brasileiro. Com todo respeito, pois estamos aí para discutir e divergir, esse conflito aberto entre igrejas revela uma competição por fieis que só estão sendo tão furiosamente disputados porque, agora, os fieis selecionam... Fazem recortes conforme demandas pessoais, lógico. Mas que podem nos conduzir a pensar que não são tão "explorados" ou "pouco avisados"... Entende? Acho que essa briga precisa ser analisada em vários níveis: religião e política, o debate na esfera pública sobre o lugar dos agentes religiosos, religião e atribuição de sentidos, como experiência... enfim. De todo modo, foi muito boa a sua provocação. Abraço.

2. É, com efeito, muito bom o debate. E Elisa é uma amiga querida. Trata-se, pois, de provocado, reagir na transparência do diálogo. Dentre todas as sugestões que fiz no texto (2012/309) A Batalha de Deus - Universal, digo, Rede Record versus Igreja Mundial do Poder de Deus, do "apóstolo", Elisa menciona uma - a questão da celetização do "profissional da fé", e a considera interessante. Todavia, ela acrescenta um "mas". Esse mais é a questão. Segundo ela, minha sugestão analisada não recobre ou pelo menos não ajuda a pensar o campo religioso brasileiro.

3. Bem, eu não tentei nem recobrir nem ajudar a pensar o campo religioso brasileiro. Não tive esse objetivo. Não se trata, aquele, de um texto para estudar o campo religioso brasileiro - trata-se de um texto, escrito de afogadilho, sem maior preocupação com fundamentação, conquanto elas existam, mas, confesso, não me preocupei com isso - para provocar discussão no campo da regulamentação desse campo. O que eu tinha em mente ali não era nem a religião em si, nem os fiéis em si, mas a instituição social religiosa e seus líderes, sua relação com a República e a sociedade. Não "pensei" cultura nem sociedade -  basicamente, pensei CNPJ e seus CPF de primeiro escalão.

4. Todavia, vá lá: aceitemos, por um momento, a provocação de Elisa. Elisa diz assim: "esse conflito aberto entre igrejas revela uma competição por fieis que só estão sendo tão furiosamente disputados porque, agora, os fieis selecionam". Com "esse" conflito, eu quero crer, Elisa quer-se referir ao conflito entre IURD e IMPD. A palavra-problema aí é "agora": agora, isto é, hoje, nesses caso, os fiéis estão selecionando igrejas. O "agora", se quer ter função coerente no argumento, tem de significar que, então, antes, antes, não, antes os fiéis não selecionavam.

5. Não? Não selecionam, desde o início do século, entre catolicismo e as ondas missionárias dos protestantismos de missões? Depois, não selecionavam após as ondas carismáticas clássicas, cujo mercado foi, antes de tudo, os celeiros tradicionais? Depois, não selecionavam dentre as cada vez mais numerosas ofertas? A ICAR perdia fatias de seu bolo, e os padres reagiram "furiosamente" - não preciso, aqui, citar os fatos, seja de Minas, seja do Nordeste, seja do Brasil como um todo. As igrejas tradicionais perderam fatias de seu rebanho para as igrejas carismáticas e reagiram "furiosamente" - a CBB, lembra?, até hoje! Eu não estou seguro da validade desse "agora". Os fiéis sempre foram tentados a ir daqui para ali - e foram. O "furiosamente", talvez, sim, já que ele diz respeito às estratégias das neo-igrejas - furiosas. Mas só se furioso for furiosamente midiático - porque tratar o outro líder por diabo é coisa que se faz amiúde e desde velhos tempos, quando o outro rouba(va) os fiéis. Mas o "agora", relacionado a uma suposta nova atitude de fiéis selecionar, tenho minhas dúvidas. Não quanto ao fato de que eles selecionem - mas de que agora eles selecionem.

6. Sim, claro, há uma questão de número e visibilidade. O fenômeno sempre ocorreu - a seleção. Todavia, o universo era inexpressivo, percentuais de um dígito da população - se tanto! - caracterizava a base da mobilidade denominacional. Hoje, aí sim, acho que haja um lugar para o "agora", trata-se de uma verdadeira "manada" - perdão, "rebanho", casa de dois dígitos, casa de milhões de "cabeças". O fenômeno se cifralizou - em todos os sentidos de "cifra". Mas não me parece novo.

7. Seja como for, não sei se alcancei o sentido disso. O que isso tem a ver com o caso em si, analisado, e tantos outros que se poderiam citar, como o famoso pregador do Rio de Janeiro, convidado a mediar conflitos entre polícia e traficantes. A Veja tem algo a dizer sobre o caso, e, os interessados podem procurar as informações. Ali sequer é caso de "briga por féis"...

8. O que tomei como "objeto" é o absoluto estado de não-controle da atividade religiosa no país. Não há em mim, no momento em que escrevo essas linhas, qualquer laivo de pregação de retorno ao "verdadeiro Evangelho". Minha declaração foi - tentou ser - republicana. Não me interessavam os fiéis, naquele pronunciamento, mas o sistema como modo muito eficiente de todo tipo de falcatrua. Nem me preocupei diretamente com a manipulação descarada do povo - que se entrega à prática, é verdade, mas ainda é o que é. Preocupa-se o modo como a matriz religiosa evangélica se entrega a potencialmente perigosos 0objetivos: desde manobras político-eleitorais, como se viu há dois anos, até a lavagem de dinheiro. Uma igreja de dez mil membros não é muito útil para grandes lavanderias - mas uma de dez milhões, queridas: e o controle que se tem numa e noutra é rigorosamente o mesmo: nenhum.

9. Qualquer um pode abrir uma lojinha, tratar isso como religião e fazer o que lhe der na telha. Aplique-se Pareto aí e se há de concordar que qualquer um, pregando em praça pública, alcançará público e mercado, por maior que seja a tolice e a barbaridade que pregue. Não se está disputando fiéis, Elisa - está? - está-se disputando "valores", arrecadação. Não se trata - mais - de coisa de cem mil, quinhentos mil, um milhão - a coisa gira na casa das centenas de milhões...

10. Ao lado da liberdade de expressão, portanto, há que se criarem mecanismo de controle. Assim, fazer como na Alemanha: quer abrir uma igreja independente: vá aos órgãos competentes. Quem é o responsável? CPF. É "responsável" para todos os fins da lei. Eu - acredite - fui convidado por um "amigo" a abrir, na cidade do Rio de Janeiro, a terceira filial de sua igreja. Eu só precisaria falar em línguas, mas isso ele me ensinaria. Ele tem uma igreja em Petrópolis - isso há dez anos, não sei mais nem se existe. Uma em Teresópolis, e queria uma no Rio. Falar em línguas é fácil, ele me disse, te ensino em dez muitos. Ninguém me contou. Era comigo o caso. Sociologicamente é bonito. Republicanamente, um "crime".

11. Sim, concordo: a matriz brasileira é um campo para estudo. Que seja estudada. Mas também se pode estudar o mecanismo do tráfico de drogas. E daí? Faz do mecanismo, porque é estudado, outra coisa além do que ele é? Que se trata de disputa de fiéis, acho que está claro - nunca se tratou de outra coisa. Que os fiéis selecionam, é fato: sempre selecionaram, e, desde a Reforma, o "mercado" está dado - não é moda neoliberal - é moda protestante. Todavia, interessa-me, com perdão da palavra, a "pilantragem" que grassa, como erva daninha, na sociedade. Não vou deixar de me indignar com essa nódoa por conta de ela emergir na e da religião.

12. E mais: a religião não é um conceito limpo - religião é o que se faz na prática. Não se trata de "culpar" a religião, mas, cá entre nós, como separar uma abstração "religião" da prática concreta da religião de fazer de pessoas, cientes ou não disso, massa de manobra? Mães entregam crianças para prostituição infantil: passou a ser bonito, porque as mães "recebem" por isso?

13. Há uma espécie de prostituição da e na religião - e, na evangélica, é grave a cafetinagem. As lideranças religiosas evangélicas (em sentido amplo), de modo geral, ressalvadas as exceções, que há, vão-se transformando em cafetões da fé. Talvez com a permissão das "meninas". Todavia, para a lei, se a menina - maior de idade - quer prostituir-se, isso é uma coisa, mas a cafetinagem é crime. Acho que os crentes até podem querer encher as burras dos pastores de dinheiro. Os pastores, fazerem isso, para mim, é crime. Se o é para a lei, o MP deve decidir.

14. Meu desabafo, lá e aqui, tem a ver com Hegel. Talvez mais com a forma como Losurdo o lê. Para justificar sua leitura de Hegel, Losurdo cita Adam Smith. Ele dizia que a escravidão é melhor combatida numa sociedade autocrática do que numa sociedade democrática. Por quê? Porque, na sociedade democrática, são os homens democratas brancos, essa coisa maravilhosa criada pela natureza, os donos dos escravos. Em nome de que Deus eles libertarão os escravos? De nenhum. Adam Smith sabia disso. Assim, só um poder absoluto - ou a guerra, por exemplo - poderia dar solução e liberdade para negros. O óbvio ululante...

15. Hegel dizia o mesmo: na democracia, se esconde muita patifaria. E eu direi o mesmo quanto à questão religiosa no Brasil e sua relação falsa com a República - e digo falsa, porque as religiões não são republicanas: arrisco dizer, nenhuma. Religiosos, vá lá. Alguns. Religiões? Apontai-me as exceções! A patifaria que grassa no mundo evangélico beneficia a liderança evangélica, os poderosos, os mesmos que, agora, tomam o poder politico lentamente: bobear, em pouco tempo teremos um Congresso de "crentes". Separar a "religião", como algo abstrato, desse movimento é laborar por meio de idealizações - não no mundo real.

16. A pergunta, então é: eles, os pastores, os donos dos evangélicos, laborarão em leis para controlar seu próprio poder e domínio sobre o rebanho da fé? D-u-v-i-d-o. Adam Smith, Hegel e Marx já sabiam que não. Assim, ou a República, enquanto pode, normatiza essa "patifaria" que aí está - quem não "deve" não tem nada o que temer, ou temo eu que, em se tomando o poder de assalto - e esse é o projeto dos mega-pastores, ajudados nisso pelos médio-pastores, e arrastando os mini-pastores, vai-se perder a chance de civilizar o processo.

17. Foi a isso a que me referi quando eu disse que temos os dias de caos que se avizinham.

18. Mas, insista-se - é uma leitura minha. Eventualmente, equivocada. Porque eu ainda acredito nele, em sua excelência, o fato. Se eu deliro, não me seja dada atenção - mas se eu aponto algo de não-miragem, se eu aponto algo que ali está, e não apenas em meu dedo de apontar, repito: os dias que se aproximam, como esse dia de hoje, são o início de um lúgubre outono, um terrível outono de árvores caducas...



OSVALDO LUIZ RIBEIRO

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