1. Não, não falo de
"educação religiosa". Estou falando de "educar a própria religião", estou falando de a religião passar por um processo educativo, isto é, ir, por assim dizer, para o banco da "escola", para lá aprender a se comportar. No contexto de uma religião deseducada (e a maioria (a
totalidade?) das religiões o é), educação religiosa chega a constituir crime de lesa sociedade...
2. Esclarecido o ponto, posso,
então, entrar no assunto. E entro.
3. Ecumenismo. Já esteve mais na
moda. Décadas de 60 a 80. Na década de 90, esfriou substantivamente e, hoje em
dia, sobrevive nos aparelhos. Claro que é ainda uma bandeira necessária, mas a
onda neocarismática, neobélico-espiritual, neo-alienante, minou significativamente
os espaços ecumênicos. Aliás, onde quer que a "espiritualização"
cresça, a força ecumênica arrefece...
4. Ainda está por se fazer um
levantamento estatístico do sucesso ou do insucesso do discurso ecumênico. Em
termos absolutos, eu diria que não há vestígios ecumênicos dignos de apreciação
- salvo como casos isolados de resistência. E os há. Todavia, à medida que avança a avassaladora
onda do tsunami neo-evangélico, o ecumenismo é, literalmente, soterrado na lama.
5. Quero contribuir com uma reflexão.
Uma, mas que se divide em duas. Isso, claro, se é realisticamente correto ter afirmado o que
afirmei, que o diálogo ecumênico encontra-se na UTI, em coma.
6. Primeiro, diria que se trata
do formato teológico, filosófico e retórico da estratégia ecumênica: todas as
religiões são "levantadas" metafisicamente ao mesmo grau de sintonia
divina, todas são igualmente "divinizadas", ressalvadas as particularidades de tradição e identidade. Assume-se sem retoques o discurso que as religiões aplicam a si mesmas: todas as mensagens são "reveladas", todas
as práticas são tratadas como equivalentes e mutuamente acatadas, todas as doutrinas são respeitadas como expressão
da manifestação dos deuses...
7. As religiões sobem, todas,
para os céus ecumênicos e essa equivalência metafísica e teológica, filosófica
e retórica é interpretada como a expressão da unidade do divino, em nível teológico, pulverizada na forma de múltiplas expressões de fé e credo pela geografia religiosa.
8. Não se pode ir muito longe com
essa saída idealista e ingênua.
9. Antes de tratar da alternativa
possível a esse modelo, permitam-me justificar porque considero a estratégia
histórica do ecumenismo fadada necessariamente ao fracasso: porque ele acredita
que pode salvar as pessoas religiosas educando as pessoas religiosas! Ecumenismo
é isso: educação.
10. Pôr religiosos num salão
litúrgico plural, nivelar suas dimensões doutrinárias no campo poético-teológico,
confraternizá-los em torno de um "sagrado" compartilhado, orientar que
se permitam a convivência de paz - isso é educação, nada mais do que educação.
11. Pode-se, todavia, educar
pessoas religiosas sem que se eduque a própria religião?
12. O que acontece, senhores, com
esse educando ecumênico, quando, em casa, ele abre a Bíblia? Ele a lê e o que
lá encontra? Diálogos ecumênicos? Não, pelo contrário! Ele encontra a ordem de Jesus para
que faça discípulos de todas as nações, doutrinando-os. A fórmula de Paulo,
considerando anátema qualquer outro Evangelho que não o dele. A ordem de Judas a que os crentes combatam pela fé definitivamente dada aos santos. As conquistas de
Josué, dizimando os não-judeus, os sem-fé. A ordem do próprio Deus de destruir
as imagens, calciná-las. As instruções legais e litúrgicas para que o povo de Deus
se afaste dos pagãos. A promessa de que todo joelho se dobrará diante do
Cordeiro.
13. Ora, senhores, como querem
que o pobre educando reaja? Basta observar o modus operandi da onda
neo-evangélica para ver se ela não atende literalmente a preceitos canônicos...
14. Ora, senhores, se não se faz
a crítica radical do cânon, dos textos sagrados - todos! -, reduzindo-os ao que
eles são, produtos da cultura, todo e qualquer esforço ecumênico logrará muito
pouco resultado, resultado ínfimo em relação ao poder dos textos canônicos de
subverterem os esforços de paz...
15. É preciso ensinar a crítica dos textos sagrados - a meu ver, não há outro caminho para a paz entre as
religiões do que a crítica moderna e consequente dos textos sagrados. É preciso
ensinar aos religiosos os processos por meio dos quais os textos foram
elaborados, processos não apenas os mecânicos, mas mormente os políticos!
16. É preciso ensinar aos
religiosos que o conteúdo - inteiro - dos textos sagrados - de todos -
constitui-se de expressão humana, cultural, histórica, política, sujeita a equívocos de
toda ordem, inclusive éticos.
17. É preciso ensinar aos
religiosos que nós, homens e mulheres, estamos acima dos textos sagrados, e
somos nós, homens e mulheres, que devemos lê-los, aplicando-lhes a ética
humana, critérios de valor que não permitam que eles, os textos sagrados,
obriguem-nos a praticar o mal, a pecar, a ferir, a matar - mesmo em nome de
Deus.
18. É preciso ensinar aos
religiosos que, quando, nos textos sagrados, lemos "Deus", “Jesus”,
“Espírito Santo”, “Yahweh” ou qualquer outro nome sagrado, na verdade estamos
diante de narrativas elaboradas por homens e mulheres, carregados de fé, que
seja, mas, ainda assim, o que eles, homens e mulheres podiam e queriam dizer,
nada além disso, sendo, portanto, tais nomes tão sagrados quanto as mãos que os
escreveram e as bocas que os ditaram..
19. Somente quando os religiosos
puderem se pôr diante dos textos com coragem ética e crítica estaremos
pavimentando a estrada que permite a possibilidade da paz ecumênica.
20. O que me permite, então,
estabelecer a alternativa ao caminho ecumênico da elevação teológica das
religiões – e essa alternativa é justamente o abaixamento teológico e filosófico das
religiões. Não se trata de um exercício alegórico e teatral de kenosis, de esvaziamento estratégico: significa, ao contrário, conversão radical à concepção da religião como fenômeno humano, cultural, social, econômico e político - e isso pela própria religião!
21. Em lugar de tentar-se o
caminho ecumênico, fazendo com que todas as religiões se entendam mutuamente
como divinas, dever-se-ia tentar o caminho de fazer com que todas se
entendessem mutuamente como humanas, apenas humanas, culturais, sociais,
históricas, econômicas e políticas. Humanas, com toda a carga antropológica que o nome suporta.
22. Uma tal educação da religião –
e não dos religiosos, que, todavia, educar-se-iam na sequência do programa,
pela transformação filosófica da própria religião, por via, agora sim, da educação
religiosa – permitiria automaticamente a crítica do texto sagrado e, com ela, a
neutralização do poder de maldade das narrativas, elegendo-se a ética
contemporânea e moderna, humanista, como critério para a aplicação dos textos à
vida.
23. A tarefa não é fácil. Tem
contra ela os próprios gestores religiosos, porque o modo como legitimam sua
gestão, lamentavelmente, se dá, justamente, por meio da instrumentalização
acrítica dos textos sagrados.
24. O que me faz, portanto,
encerrar meu ensaio com uma afirmação de efeito: o problema, meus amigos, é o
clero. E com clero quero me referir também àquela categoria que não aplica a si
o título, mas encena todas as prerrogativas históricas que lhe cabe: das
pantominas litúrgicas à administração do poder sagrado.
25. Ou não?
25. Ou não?
OSVALDO LUIZ RIBEIRO
5 comentários:
Osvaldo,
Concordo com pelo menos 90% do que vc escreveu neste post - o que é um milagre, vc sabe bem por que. Não vem ao caso definir quais são os 10% de discordância, neste caso o que importa mesmo é caminhar na mesma direção, ainda que os pontos de parada sejam diferentes.
Eita! Dia histórico! :o) O problema é que não vou dormir por causa dos 10%, hahahahaha...
olá, grande osvaldo.
acho o texto interessante e digno de ser de sua autoria. problematizo, porém, o "elogio à modernidade" que você teima em fazer. no intuito de defender um humanismo elogiável, você chama disciplinas à baila, convocando, por exemplo, a antropologia, que me é mui cara, e jungindo elementos que não poderiam ser juntados sem uma boa dose de "dogmatismo humanista", se que é que faço justo na aplicação deste termo à sua pessoa. acho que seu viés humanista se mostra por vezes ingênuo, pois chama disciplinas que, em sua essência, refutam peremptoriamente a postura humanista tão defendida no seu texto. o que fazer com o valor da vida, tendo em vista sua diminuição no indivíduo, para sua árdua defesa no coletivo, é algo a se pensar. afinal, em algumas sociedade simples, inclusive em várias brasileiras, o indivíduo para quase nada vale, exceto de for utilizado para a sobrevivência do grupo. infanticídios de várias naturezas mostram isso com propriedade, fazendo com que a antropologia se desgrude do humanismo tão apregoado por ti, gritando desesperadamente: "o que serve para uns, modernos humanistas, não serve para outros, distantes e 'simplistas'(?)".
ps: a bel vai marcar a análise!! rsrsrs
É, de fato, uma boa reflexão a respeito do ecumenismo. No entanto, a sua reflexão/proposta/apologia descaracteriza a religião como religião. Deixaria de ser religião como a entendemos.
Essa tarefa de educar a religião é feita por escolas (centros acadêmicos), uma vez que as escolas são formadas também por religiosos de todos os tipos e níveis.
Não sei se compreendeu minha observação, ok?! Forte abraço!!!
Caro professor Osvaldo, fiquei com uma dúvida sobre sua argumentação, na verdade, sobre a premissa (se é isso mesmo!?) do paragrafo 17, quando se refere à "ética humana". Ressalta aqui a importância de tal ética porque não é "divina", "espiritualóide", "metafísica" mas, sim, com o odor da carne humana? Se sim, qual seriam seus fundamentos? De forma alguma pergunto isso a favor de uma ética "metafísica"... Ass. Jonathan Douglas Pereira
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