1. Falo genericamente. As exceções, e as há, pontualmente são irrelevantes. Eventual relevância das exceções se mediria a longo prazo, pelo acúmulo de retórica circulante, de valor "hipocritizável", mas, ainda assim, eficiente na circulação em certos contextos. Por exemplo, a compaixão cristã foi tema fundamental no século XIX - o século de emergência da burguesia e da filosofia marxista do proletariado, os dois atores fundamentais na luta pela sucessão das monarquias. Mas a civilização cristã não foi exatamente a materialização dessa compaixão...
2. Chegamos a uma sociedade em que quase duas mil famílias são despejadas à força das residências onde moravam desde 2004. Nesse ato de violência estavam unidos do mesmo lado: o Estado (o Município de São José dos Campos e o Estado de São Paulo [se quisermos aumentar o rigor, inclua-se o Estado Federal, na hipótese de ter podido empregar prerrogativas legais que, seja como for, não foram empregadas]), o Judiciário (não vou usar a palavra justiça aqui, seria despropositado), o Poder Executivo estadual de São Paulo - a PM - e do Município de São José dos Campos - a guarda municipal.
3. A justificativa da violência - supostamente, a Lei. Digamos que a justificativa seja "legal" (tenho profundas dúvidas se, houvesse interesse, a legalidade não teria outra saída para o problema de Pinheirinho). Mas, vá lá, digamos. Ora, senhores: não estamos diante de um caso em que 5.000, 6.000 pessoas contam menos, muito menos, contam nada, coisa alguma, do que uma, o senhor alegado "proprietário" do terreno? A "Lei", feita pelo povo, para o povo e por meio do povo (será?) vale, afinal, mais do que o povo? A "propriedade" de um vale mais do que a propriedade ou a não-propriedade de 5.000?
4. Não, não vale. Nada, absolutamente nada, vale mais do que o povo, fundamento único do Estado, da Lei, de qualquer badulaque do sistema jurídico. E, todavia, na prática, nem o Estado nem o Judiciário nem o Executivo Estadual nem o Executivo municipal trabalham para o povo. O povo é empecilho. O povo é problema. O povo é entulho que se afasta para o lado à força de máquina. O que era para estar aí a serviço do povo, o que era para ter por finalidade única e exclusivamente o povo, serve a quê?, nos meandros da "Lei", nas alíneas da letra, nas curvas da retórica, a quem detém o poder de fato, aos amigos dos amigos dos amigos. Povo, dane-se o povo! Em face até da Lei, que seja, dane-se o povo!
5. E o povo não se deu conta disso. Como o gado, o povo, apenas, se deixa pôr em redis, se deixa levar para cá e para lá... E isso tudo ao requinte de ser tratado como "invasor", logo, criminoso, pela mídia.
6. E quanto à Igreja? Fiquem livres para pensar de outra forma - o que quer eu eu pense, o que quer que você(s) pense(m), nada vale. Vale a realidade. E, quando eu olho para a Igreja, o que vejo? Vejo que aquilo para o que ela devia existir não conta - ela, a Igreja não vive, não existe, não trabalha para ele, o povo.
7. Outros valores, outros "ídolos" estão no lugar onde devia estar o povo. Lá está a doutrina - quando é o caso. Vivemos outros dias, mas, no fundo, ainda é a doutrina que mantém presos os homens, e é porque acreditam nelas, nas malditas doutrinas, que eles se mantém presos, submetidos ao uso e ao abuso de poderes que, em lugar de servi-los, servem-se deles. O controle do sagrado mantém agrilhoados homens e mulheres crédulos, crentes - e, por isso, presos.
8. Dinheiro. Doutrina, para os mais clássicos. Dinheiro, para nos neo-igrejeiros. Em nome do dinheiro, mais uma vez, o povo é usado. Tacho de barro, raspa-se até que lhe saiam lascas a carne do pobre, viram-se-lhes os bolsos do avesso até que lhes caiam as últimas moedas, em nome de Jesus.
9. Não, a Igreja não trabalha (mais?) para as pessoas, para a gente, para o povo. A Igreja, seus líderes (no caso clássico), seus donos (no caso dos neo-igrejeiros) trabalham para si, confabulando, nas noites e nas coberturas novos modos de arrancar de suas casas mais incautos (in)felizes, beatos, crentes sinceros (alguns), gente que acredita piamente estar a servir a Deus (e, psicologicamente, estão).
10. "Oh, mas a Igreja não está aí para servir ao povo - está aí para servir a Deus!" Hipocrisia. Quanto mais ouço isso, tanto mais me convenço de que estou correto em minha leitura do sistema. Deus, eles dizem - mas, na prática, Deus não passa de doutrina e/ou dinheiro. Na prática, não há ninguém que sirva a Deus: serve-se a qualquer coisa com o que se faz Deus identificar - a doutrina, o dinheiro, o diabo...
11. Nem os gestores sociais nem os gestores eclesiásticos podiam fazer o que fazem. É um crime. Um pecado. Deviam honestamente estar preocupados com o bem das pessoas, seu dia a dia, seu trabalho, sua saúde, sua família, seu emprego, seu dinheiro. Devia haver sinceridade no serviço, honestidade, dedicação verdadeira a pessoas. Mas não é às pessoas que se serve. Elas não contam (mais?). O fruto chamado sociedade apodreceu. O fruto chamado Igreja criou bolor.
12. Sei que muita gente há de discordar de mim. Humildemente, admito que posso estar exagerando. Quem sabe? Mas essas mesmas pessoas sabem exatamente do que estou falando, vêem exatamente o que eu vejo, os mesmos desmandos, a mesma escravização pelo controle do sagrado, a mesma escravização pelo dinheiro. Todavia, porque ainda têm um desejo sincero de servir ao sagrado que, entendem, está ali, acreditam que, passando a mão por cima, dourando a pílula, fingindo que não vêem ou que o Senhor pede que suportemos tudo isso em nome dos cultos de domingo, ou seja, "suportando" o mal, tudo terminará bem, e que as aparências sagradas valem a humilhação silenciosa do povo, silenciosa e cotidiana. Porque "Deus é mais", vão repetindo, até não poderem mais ouvir coisa alguma...
13. Quem sabe não estão certas? Quem sabe o mal é ver (mas será que vejo bem?)? Quem sabe não é melhor, mesmo, arrancarmos os olhos? No caso de Pinheirinho, na prática, não é como se os houvéssemos arrancado já? E não só os olhos, mãos os olhos, os pés e as mãos?
OSVALDO LUIZ RIBEIRO
2 comentários:
Grande Osvaldo, segundo Elio Gaspari em O Globo de hoje, os conflitos se deram onde o PSTU estava envolvido e que fez a opção por não negociar. Eu postei no Face o link do artigo.
Um abraço.
Lair, sua concisão fez-me perder-me: o que você quis dizer com isso? Interpretei assim: a única negociação possível ao povo (que seja via PSTU - de fato, julgo ter visto pelo menos uma bandeira na confusão) era sair. Mais nada. Não ter negociado significou não sair e sofrer a violência. Moral da história: não saiu, levou pau. É isso?
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