1. Templo, para mim, é um tema passional. Talvez nenhuma outra palavra esteja presente em meus escritos mais do que "templo" ou aquilo que ao "templo" está relacionado. "Teus Altares", esse hino belíssimo, musicalização do Sl 84, fez e, de certa forma, faz parte desse minha história com o termo e a coisa que ele designa - "Templo".
2. "Teus Altares" acompanhou-me durante um bom tempo, em minha "mocidade evangélica", nos meus primeiros anos de jornada cristã, e lá se vão tantos anos. Eram dias de ler a Bíblia sofregamente, uma vez, duas, três, quatro. Ainda tenho a Bíblia daqueles anos, totalmente pintada, cada leitura completa dela marcada, página a página - numa delas, uma brevíssima oração de uma linha em cada topo de página, a lápis...
3. O Sl 84 era uma leitura agradável, à época. Eu diria que o lia em quase perfeita sintonia com o seu sentido sacerdotal. Nenhum judeu poderia cantá-lo como seu, porque, à época, o templo não era como são os nossos, de hoje, escancarados para todos. Só os sacerdotes estavam lá. E, mais tarde, quando o povo passou a lá dirigir-se cerimonialmente, porque a isso forçado, não era aquilo uma nave que se entulhasse de fiéis. Assim, seja o Sl 133, seja o 84, apenas sacerdotes o cantavam, de fato e verdadeiramente. Mas eu, enfiado até o pescoço na nave batista, cantava-o, pardal de Jesus...
4. Então, vieram os dias de ler e estudar. Tive meus dias de Saulo, dias de caírem as escamas. E descobri, então, duas coisas. De um lado, Mircea Eliade e suas pesquisas em torno do "templo" como centro do mundo. Levei essa jornada tão a sério que ela culminou, anos mais tarde, em minha Tese de Doutorado, em que defendi a afirmação de que, criação, na Bíblia Hebraica, nada tem a ver com o nosso Universo moderno e conhecido, mas, apenas, com o Templo de Jerusalém e o ecúmeno formado pela estrutura geopolítica de Judá. Acho que, até hoje, é meu maior trabalho.
5. Mas descobri outra coisa: que o templo tornou-se, desde então, isto é, desde que Josué assumiu as funções de sumosacerdote, lugar de maldade, perversidade, controle hierocrático, operassão sobre camponeses e mulheres - mais e pior do que haviam sido as coisas nos dias dos reis. Ruim com os reis - que a TdL tanto defenestra? Pior com os sacerdotes... E o "templo" era e é, desde então, QG dos sacerdotes.
6. Tudo quanto é mau no Cristianismo daí deriva - do templo. É possível que Jesus tenha se insurgido contra o templo. Talvez por isso tenha morrido. Mas, com as coisas de Jesus estamos diante de tradições posteriores, e cada Evangelho o reconstruiu à sua imagem, de acordo com sua teologia peculiar e seu interesse "missionário", de modo que não sei quem foi Jesus - e, de qualquer forma, se Jesus de fato tornou-se um crítico do templo, sua crítica ruiu inteiramente quando seus discípulos, depois da cruz, interpretaram-no como... Cordeiro. Se Jesus, de fato, insurgiu-se contra o templo, ser tomado pelos seus como Cordeiro foi a maior traição que podia ter sofrido...
7. Eu podia tornar-me um homem de metáforas e alegorias, como Justino, e tornar meu o que não é, fazer de conta que é bom aquilo que no fundo era mau e, então, cantar loas a um templo que eu inventasse ser o que templo não é. Mas meu espírito, no sentido hermenêutico, está mais para Marcião. De modo que não posso mais olhar com bons olhos para o Templo. Só posso desgostar dele, ressentir-me de toda dor e sofrimento que impôs - e impõe - a homens e mulheres.
8. A única forma de voltar às suas portas é na Fenomenologia da Religião - uma espécie de catarse de meu passado, de retorno à ingenuidade, que experimento lucidamente, com toda a tradição crítica sobre a mesa, ao folhear Eliade...
OSVALDO LUIZ RIBEIRO
PS. Luciano, leitor de Peroratio, me lança aos pés a seguinte questão: "Osvaldo, considerando sua assertiva no sentido de a interpretação de Jesus pelos discípulos como Cordeiro consistir uma traição destes para com aquele, que leitura é possível das passagens do Antigo Testamento, sobretudo no livro do profeta Isaías, apontadas como profecias acerca de Jesus naquela condição?". Respondo.
A apropriação judaico-cristã (feita ainda por judeus "aderentes" a Jesus, mas não "já" cristãos) da tradição do AT se dá dinâmica e concomitantemente à interpretação de Jesus como Cordeiro. A idéia de que aqueles textos tratem de Jesus é posterior, isso (me) parece claro, aos eventos pascais, de modo que essa apropriação alegórica, essa releitura, essa reinterpretação cristológica dessa tradição não é anterior àquela metáfora de Jesus como Cordeiro - é relativamente paralela. Talvez nasçam juntas a apropriação e a metáfora de Jesus como sacrifício substitutivo. Me parece incontornável admitir que foi a cruz, isto é, a morte de Jesus o acontecimento que serviu de base aos críticos da fé - sempre judeus - messiânica em Jesus, justamente pelo fato de sua morte. A morte, então, precisa entrar na narrativa messiânica, e o faz por meio da sua interpretação à luz da morte vicária no altar, isto é, no templo, a saber, o cordeiro. Moral da história, Jesus, Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo. Nessa formalização já está presente a superação da crise da morte pela sua transformação com base no modelo de sacrifício, que, todavia, não está presente no evento histórico, mas na sua interpretação dinâmica e em conflito com a crise e a crítica judaica, assim me parece.
Para resumir, ou simplificar: a traição, se ela houve, dá-se pelo resultado do processo, isto é, a interpretação de Jesus como cordeiro. Essa interpretação passa: a) pela crise da morte de Jesus, b) pela necessidade de cooptar a morte para a narrativa messiânica, c) pela reinterpretação dessa morte como sacrifício à luz da apropriação alegórica de textos da tradição. Ora, todos esses textos são textos relacionados ao templo, ao sacerdócio, ao sacrifício. Ora, se Jesus foi "inimigo" do templo (e foi?), resulta necessário perceber a ironia dessa interpretação teologia - antes, inimigo, agora, cordeiro desse altar...
Depois disso, catequese.
É meu modo de ver as coisas, é como penso que elas aconteceram. Se aconteceram assim, apenas por meio de muita pesquisa histórica se pode averiguar. Não é campo para a fé, nesse caso.
Um comentário:
Osvaldo,
considerando sua assertiva no sentido de a interpretação de Jesus pelos discípulos como Cordeiro consistir uma traição destes para com aquele, que leitura é possível das passagens do Antigo Testamento, sobretudo no livro do profeta Isaías, apontadas como profecias acerca de Jesus naquela condição?
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