sábado, 7 de janeiro de 2012

(2012/017) Aristóteles na Idade Média - é ou não é castração?

1. Todo profissional, que gosta de sua profissão, ou que, pelo menos, quer ser reconhecido nela, deseja fazer bem o que faz. Que engenheiro mecânico não gostaria de criar seu próprio automóvel? Ou que mecânico não gosta de, apenas pelo som, identificar o problema do carro à sua frente? E que médico não deseja poder curar qualquer paciente?

2. Eu não sei exatamente o que sou. Um professor de teologia - é o quê? Professor é vago demais. Professor de teologia, talvez ainda mais confuso. Exegeta não me define profissionalmente, porque não fui contratado por e para isso. Logo, não sei o que sou. Mas gosto de, lendo e estudando, ver coisas "novas". Para mim, o que está dado, certo, medido, pesado, já perdeu a graça. O que me interessa é ver o que não se viu e/ou ver (mais) adequadamente o que se havia visto equivocadamente.

3. Há alguns minutos, uma idéia que tenho defendido mostrou-se-me não-isolada. Eu tenho dito que Tomás de Aquino, dito teólogo aristotélico, o famoso doutor da Igreja, no fundo, castrara Aristóteles, arrancara-lhe os testículos, emasculara-lhe, transformara-o em um gatinho de garras atrofiadas e moles, miau!

4. Não, nunca me detive a ler Tomás de Aquino inteiro. Nunca o estudei com o objetivo de confirmar minha tese (não estamos em época de se provar nada a ninguém, essa época fluida, matreira, fabricada). Ela, minha tese, viera por um "pré-conceito": iconoclasta, de uma epistemologia e pedagogia contrárias à de Platão, logo, imprestáveis à "gnose" - e, naturalmente, a fé cristã não passa de gnose -, Aristóteles é absolutamente imprestável à fé. Mais - ele é perigoso a ela. A "fé" tem de ser protegida das garras desse monstro!

5. O Protestantismo, nos seus cinco primeiros minutos, não foi aristotélico? Usou contra Roma as armas de Aristóteles. Depois, sabemos, Lutero voltou a Platão, como platônico é todo crente e cristão, hoje (mormente os líderes!) - e tem de ser, se quer ser esse gnóstico milenar. Mas o Protestantismo dos cinco primeiros minutos é filho de Aristóteles.

6. Bem, lendo, agora, Alexandre Koyré, minha "tese" é relativamente confirmada. É verdade que Koyré não usa a palavra "castração", mas o efeito que descreve, me digam se não é o mesmo?

7. Falando sobre a entrada de Aristóteles no Ocidente - como eu sempre o dissera, por meio dos árabes -, Koyré assim se expressa:
Assim se compreende muito bem que a autoridade ou a ortodoxia religiosa tenha condenado Aristóteles. E que as filosofias da Idade Média tenham sido obrigadas a interpretá-lo, isto é, a repensá-lo num novo sentido, compatível com o dogma religioso. Esforço que apenas parcialmente logrou êxito com Avicena, mas que foi brilhantemente bem-sucedido com Santo Tomás: Aristóteles, de certa forma cristianizado por Santo Tomás, tornou-se o fundamento do ensino no Ocidente.
(...)
E somente tornando-se infiel ao espírito do aristotelismo histórico - ou, se se preferir, reformando e transformando, neste particular (como em outros), o aristotelismo de Aristóteles -, criando uma espécie nova de formas substanciais que podem prescindir da matéria, é que Sato Tomás pôde conformar-se à verdade da religião (Estudos de História do  Pensamento Científico, p. 31 e 33). 
8. Os cientistas e eruditos costumam ser comedidos. Não usariam a expressão "castração". Mas Koyré diz, com todas as letras, que Tomás chega a usar noções que, para todos os fins, são contrárias a Aristóteles - para quem a noção de alma é muito complicada, talvez, impossível. Para adequar-se à fé, Tomás adultera Aristóteles. Koyré indica o fenômeno, aplicando-o ao conteúdo aristotélico. Para mim, ainda mais grave, isto é verdadeiro principalmente quanto à epistemologia!

9. Ora, depois de adulterar Aristóteles, como pode o bom teólogo ser tomado por... aristotélico? Que interesse está em jogo? Minha resposta: para os incautos repetirem o ensino do santo, por isso tomarem o efeito da apropriação de Aristóteles e, como resultado, tornarem-se inócuas as garras do filósofo. O leão vira um gatinho magricela - é engolido pela gnose! - e a Igreja permanece. Foi bem sucedida, não foi? Mesmo Lutero, tolo, empregando o filósofo em plena ereção, para com o falo dar à cabeça do Papa, imediatamente se verá obrigado a recorrer promover certa disfunção erétil do grego para, por meio disso, poder fundar sua própria catedral... que com Aristóteles não se erguem essas naves de incenso, naturalmente... Os católicos foram mais prudentes do que Lutero, porque castraram Aristóteles antes de o usarem dentro de suas paredes. Mas essa é a questão: Lutero estava em guerra, e necessitava, por cinco minutos, de uma arma...

10. O leitor atento, todavia, poderia me perguntar: ora, se você nunca leu Aquino de forma completa, por que meios chegou a pensar isso, essa tese da emasculação de Aristóteles pelo doutor aristotélico, tese agora indiretamente confirmada por Koyré? Minha resposta viria automática (irrefletida?): Aristóteles é revolucionário demais, epistemologicamente falando, é um proto-cientista, um proto-moderno, nesse sentido. Ora, a Igreja de Tomás é a mesma que a Igreja de antes-de-Tomás. Ora, esse fenômeno só tem uma explicação: cooptar Aristóteles para dentro da Igreja, fazer dele uma gueixa a serviço da "fé" e da "gnose" platônicas e, assim, salvar a Igreja contra a horda árabe, digo, filosófica, digo, aristotélica. Simples assim. Dito de outro modo: onde entra Aristóteles, Platão tem de sair correndo. Como Platão está, até hoje, assentado no trono de Roma e de Wittenberg, resulta necessário dizer que, aí, Aristóteles nunca esteve. Mas esteve: então, castrado. Ponto.

11. O mesmo efeito vi uma vez, ao vivo, numa formatura em que tive o desprazer de ser, de certa forma, obrigado a estar (e não por culpa dos alunos, de fato). O teólogo desancou por 45 minutos a exegese, detratou-a de todas as formas possíveis, sim, o paraninfo, comigo sentado atrás dele, eu, sabidamente um exegeta, tratando-a, ele, por todos os adjetivos negativos possíveis, inclusive os derivados de "fraude" e, ao fim, sapecou umas quantas citações - equivocadas, todas! - de Morin, um mestre meu, a fazer os pobres ouvintes crerem que, lido Morin, as impropriedades contra a exegese ali proferidas se confirmariam (isso, sim, uma fraude). Como nenhum daqueles presentes lerão Morin, os que prestaram atenção na prédica iracunda do teólogo cuidarão, até o túmulo - onde tudo cessa - que Morin é um cruzado contra a exegese, assim como o mundo inteiro, teólogos de renome, até, citam zilhões de vezes a fraude "Aquino, o teólogo aristotélico". Mesmo fenômeno - cooptação, castração, defraudação. É velha a estratégia. Mas eficiente. Conta incautos.



OSVALDO LUIZ RIBEIRO

(PS. talvez Koyré não tenha, mesmo, tratado a cooptação de Aristóteles pela metáfora da castração. Mas talvez isso seja apenas um detalhe: falando da apropriação de Tomás de Aquino e Avicena - "o aristotelismo medieval não é o de Aristóteles; é dominado, transformado, transfigurado pela idéia religiosa do Deus criador, do Deus Infinito" (p. 35).

Nenhum comentário:

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...

Sobre ombros de gigantes


 

Arquivos de Peroratio