1. O bom teólogo, e bom teólogo é aquele a serviço da Igreja, qualquer Igreja, é um catador de feijões. Tem de ser, não há alternativa. Uma vez que seu "livro-texto" é um acúmulo de ditos contraditórios, moralmente, teologicamente, historicamente, resta ao bom teólogo escolher alguns e deixar outros de lado. A fábrica de teólogos, isto é, a que os fabrica, é, assim, uma fábrica seletiva, como aquelas máquinas que dentro delas se colocam grãos misturados de café e ela seleciona os "tipos", uns pra cá, outros pra lá...
2. Naturalmente que, se você é um teólogo desse tipo, vai discordar de mim, e, para o fazer, selecionará, escolhendo-os, meia dúzia de versos, contrariando-se, mais uma vez. Penso que é um problema derivado do modo como se inventou essa fornada de teólogos e igrejas, porque podia ser bem diferente. A maldição do livro, eis a desgraça que pesa sobre as igrejas: não podem recorrer à tradição (o que as salvaria!), de modo que são obrigadas a mentir para si mesmas, para os outros e - até! - para Deus.
3. Outro dia, dava aulas em Minas, em Valadares. Era a semana em que o STF analisara, aprovando-a, a legislação sobre união civil de casais de mesmo sexo. Não sei se eu levei o tema à aula - sei que ele surgiu. Uma aluna manifestou-se contrária à lei, argumentando que a Bíblia condenava o homossexualismo. Eu sou favorável à lei e, ao mesmo tempo, sei que a Bíblia condena o homossexualismo. Como a conversa se desenvolveu?
4. Assim - disse-lhe que, era verdade, a Bíblia condenava o homossexualismo. Todavia, a Bíblia também condenava que mulheres falassem na Igreja - confesso que, nesse ponto, fui provocador: era com uma mulher que eu dialogava, e eu tinha absoluta certeza de que: a) ela, mulher, falava na igreja e b) ia ficar uma arara com minha citação.
5. Com efeito, minha interlocutora ficou um tanto quanto contrariada. E, eu já imaginava, contra-argumentou nesses termos: mas a proibição de mulheres falarem na igreja era cultural (era assim que o púlpito de sua igreja justificava a coisa)! E eu não esperei meio segundo: verdade, absoluta verdade. Paulo está preso a uma determinada percepção cultural - no fundo, tudo na Bíblia é cultural, de sorte que também a condenação do homossexulismo e de tudo o mais. Tudo, cultura.
6. Minha interlocutora não concordou. Disse-me: não, a proibição de mulheres falarem na igreja é cultural, mas a do homossexulismo, não. E eu, impiedoso, lhe disse assim: isso porque você não é lésbica: fosse, diria que é cultural a condenação do homossexualismo. E arrematei: porque cada um de nós faz cultural o que interessa na Bíblia, e, o mais, a isso se trata como verdade eterna, a saber, o que fere o calcanhar dos outros. A moral baseada na Bíblia é uma hipocrisia de interesse, uma teologia de umbigo, em que cada um tira de lá o que convém, e aperta a goela de terceiros... Para nós, o mel, para eles, o fel...
7. O mesmo vale para a teologia. José, da Igreja X, usa o verso A. Manoel, da igreja Y, o verso B, que desmonta o verso A. Maria, da igreja W, usa o verso C, que desanca A e B, e assim vai. José diz que Manoel e Maria não sabem ler, que são hereges. O mesmo, de cada qual, dirão os outros. Na igreja de José, manda José. Na de Manoel, Manoel. Na de Maria, Maria. Em cada qual se comem feijões, mas os feijões da latinha de feijões da marca A, em X, B, em Y e C, em W. A isso se chama teologia sistemática, assim se faz teologia na igreja.
OSVALDO LUIZ RIBEIRO
Um comentário:
Adorei o texto!!! Claro que, também, adoração contextualmente herética. Eu sei o que é esse feijoeiro. Já comi muito desse feijão. Interessante que, como professora, vivi uma experiência parecida sobre a questão da homossexualidade.
Estou fora dessa lavoura. Meus 50 anos têm sido o meu melhor momento!
Como de tudo. Tem sempre espaço para experimentar novas coisas. Antes, em razão de "catar feijão", quase me suicidei.
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