segunda-feira, 2 de janeiro de 2012

(2012/002) Heidegger, Boff e um Deus que nos deve salvar



1. É com todo respeito que se deve chegar ao pé dos deuses - e discordar deles. Quando por não mais, ao menos pelo risco de sermos fulminados, como, algumas vezes, Yahweh fulminou alguns. Há deuses e deuses, mas, se deuses são, são, todos, igualmente potentes - e perigosos. Ou não são deuses. Instrumentaliza-se "Deus" para que seja útil à retórica, mas tenho cá minhas dúvidas se um deus instrumentalizado, castrado, tornado praticamente uma menina de bondades meigas, é, ainda, um Deus. E, para encerrar o parágrafo, pergunto-me se Boff está fazendo... metáforas...

2. O leitor e a leitora devem, antes, ler o artigo de Boff. O artigo está aqui. Põem-se, lado a lado, dois dos maiores argumentos da filosofia/teologia (sim, as duas, no século XX, re-enamoraram-se amiúde) em face da situação "crítica" do século XX "materialista" e "tecnológico": a) a tecnologia é perversa, má e vai destruir o mundo; e b) só (um) Deus pode salvar-nos.

3. Uma interminável fila de filósofos combateram o modus vivendi do século XX - a tecnologia. Talvez considerem melhor a vida no Gabão do que na Coréia do Sul. Em todo caso, concedamos a eles o argumento de que se ressentem do "lado negro da força" e de que seja contra ele que se embatem. Sim, nesse caso, há que se considerar que a tecnologia tem seu lado bom e seu lado ruim. Mas, cá entre nós, só a tecnologia? Tudo o mais! Até a Bíblia, meus amigos! Até o amor! Tudo, absolutamente tudo, tem um lado bom e um lado ruim... E como combater o lado negro da tecnologia com... "Deus"?

4. Essa história, velha como andar para frente, de que só um "Deus" pode nos salvar... Do que se trata? Bem, se se trata de uma metáfora (anda na moda!), diria que estamos diante de um flagrante de nostalgia: as saídas só se nos apresentam pelo vício medieval, mas, como nossa consciência nos constrange, usamos de metáforas (para ser comedido na crítica, eu o digo nesses termos). Se, de fato, levarmos a sério o que ouvimos nas metáforas da filosofia/teologia, a vida acontecerá dentro de mosteiros e igrejas, a própria vida será um grande convento, com anjos de bondade a voar por aqui e por ali, bovinamente, e Deus se materializará, definitivamente, como um híbrido de Madre Tereza e Chico Xavier...

5. Mas, senhores: isso é um Deus? Não me esqueço, nunca, que Marcião deparou-se com a retórica cristã de Deus e, imediatamente, separou-a da Bíblia. Não, aquele Deus "amoroso" e "bom" que se pregava cristãmente não podia ser o mesmo da Bíblia dos judeus, assassino, colérico, selvagem, impetuoso, acima do bem e do mal, que ama estupradores e assassinos. Marcião acaba por abandoná-lo, o que lhe custará a acusação de heresia - e até hoje! Já os cristãos, por meio, sempre, sempre, absolutamente sempre, de alegorias e metáforas, com um lado da boca usarão palavras como amor e compaixão e com o outro, pregarão as páginas do Antigo Testamento (Justino, por exemplo!): escola de contrasenso, jogo de catar feijões... Não, isso não é um Deus - é a grande face retórica (pública!) de um sacerdote. Mas só um lado dela...

6. Mesmo os filósofos/teológos, para usarem o Antigo Testamento e a pregação do Deus-amor, têm que inventar outro Deus, desmontar as doutrinas tradicionais e conciliares, fabricar, para si, outro Deus. E não se dão conta (ou se dão?) de que fabricam um Deus a altura e medida de sua retórica?

7. Pior - esse Deus de amor, esse boníssimo Deus de compaixão, que escorre pela boca dos filósofos/teólogos, que fez ele em dois mil anos? Que é a história da sua gente? Que é a nossa história? Quanto mais "bonzinho" ele foi pintado, mais carne ele comeu e assou... E, vejam bem: falo da retórica aplicada a essa idéia: quanto mais bondade ela foi representando, tanto mais força se teve de fazer aqui embaixo... O século XX será o século sem Deus, ou será, ainda, o século da resistência à ideia de que estamos sós? O século XXI será o século do retorno à Idade Média, como quer Boff (via Heidegger!), a seu tempo e modo, vá lá, ou será o século em que teremos de aprender a viver como adultos (como o teria querido Bonhoeffer?)?

8. É curioso como escrevo num blog, viajo de avião para cima e para baixo, trafego em largas avenidas asfaltadas, vendo livros em todo o planeta, e, ainda assim, demonizo a tecnologia (sem a qual nada daquilo seria possível!), ao tempo em que mimo uma idéia à custa da qual queimaram-se carnes... Consigo descrever Deus como bom, mas não consigo ver o lado bom da tecnologia...

9. Tudo bem, que denunciemos a perversidade da tecnologia - mas considerarei coerente a retórica que, ao mesmo tempo, denunciar a perversidade inerente à idéia de Deus. Porque, se para denúncia da tecnologia, eu tenho de inventar uma idéia absolutamente mítica de um "Deus-bom", bem,  que é, de fato, que estou a dizer? Não se vá querer que eu dê atenção a ela... E certamente ela não é dirigida a mim...

10. Para encerrar: se sou eu que, de dentro da retórica de "Deus", devo sacar o lado bom e deixar o lado perverso, então pergunto - para que a retórica de Deus? Por acaso, ela não está aí apenas por conta da boca-sacerdote que (ainda) a utiliza?



OSVALDO LUIZ RIBEIRO

PS. O quê? Onde está Heidegger? Ora, mas eu não mandei ler o artigo de Boff primeiro?



Um comentário:

Anderson disse...

Não vi no artigo do Boff uma demonização da tecnologia.

Entendi sua colocação e crítica ao deus histórico. Sei que Boff tenta sim, ao citar Heidegger, trazer o deus bíblico e o deus bíblico te sim, os atributos que você citou..
Mas na verdade, com boa vontade dá para perceber que Boff não demoniza a tecnologia mas como a nossa sociedade se pensa.

Se ele comete o equívoco de trazer conceitos antigos educolrados com tintas atuais, elas, em si mesmas têm como artifício trazerem uma reflexão sobre os rumos que nossa sociedade contemporânea está tomando.

Ele chama ou propõe uma revisão do olhar. Ele a propõe, parte de uma dada visão e anseio que é dele e de muita gente. |Esse anseio ele traduz como Deus. parte da teologia bíblica e vai para uma metafísica, construída sim, mas que tem como proposta algo diferente ou que possa dar aos homens uma forma diferente de agir no planeta.
Seu artigo é uma boa provocação nas a intenção do artigo de Boff, ao meu ver não era extinguir a tecnologia ou desvalorizá-la.

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