1. Digo aos meus alunos: qualquer um de vocês, com sua velha Almeida mesmo, sem nenhuma noção de hebraico, consegue passar numa prova de média 7, cuja tarefa seja separar as duas narrativas do dilúvio que, hoje, encontram-se reunidas em Gn 6,5-9,18. Baste que sejam separados os versos onde aparecem Deus e Senhor e o índice de acerto será de pelo menos 70%, de tão óbvia que é a colagem, e dado o fato de que as duas narrativas originais foram simplesmente interpostas uma dentro da outra, cabeça com cabeça, barriga com barriga, cauda com cauda...
2. Passarei a usar outro exemplo, de agora em diante. João, o prólogo. Ali, sabe-o a literatura especializada, surge a "cristologia alta" - um Jesus "celeste". O dos evangelistas anteriores chegou até o nascimento virginal. O de João, aparece, já, como um ser "divino/celeste": o Verbo, o logos...
3. É interminável a fileira dos comentaristas que vão na Grécia buscar a explicação disso. Pudera!, alegam: trata-se de grego, e, se de grego, da Grécia.
4. Todavia... Faz o seguinte: esquece por dez minutos sua veia evangélica e pega uma Bíblia católica. Lá, encontrará 3 livros - Sabedoria, Eclesiástico e Baruque.
5. Agora, permita-me guiá-lo numa visita a algumas passagens. Em Sabedoria, leia 7,21 e 7,25, e, depois, 8,3-5. Aí está, uns dois séculos antes de João, a noção de uma Sabedoria (sim, ainda não é o Verbo!) que é: a) artífice do mundo, isto é, criadora, b) e que é assumida como um "eflúvio do poder de Deus", uma "emanação puríssima da glória do Onipotente". ´Diz que é a "união com Deus" (!) que "realça sua nobre origem".
6. Contundente, não? Sim, mas reconheço - vago. É a Sabedoria, não o Verbo. E, em João, trata-se do Verbo. Justa ponderação!
7. Nesse caso, deixemos Sabedoria em direção a Eclesiástico. Que capítulo! Eco 24. Quem nunca o leu, jamais compreendeu Jo 1, isto é, historicamente. Quem o leu, e ainda acredita numa origem "grega" (o logos dos filósofos!) para o Verbo, bem, no comments.
8. Em Eco 24, repetem-se os temas de Sb 7 e 8. E acrescentam-se outros maravilhosos. A Sabedoria vira Verbo, Palavra - ela sai da boca do Altíssimo (24,3). Criadora, a Sabedoria é o Verbo que sai da boca do Criador. Mas tem mais. O Criador manda a ela, Sabedoria-Palavra, que arme a sua tenda em Jacó, isto é, que vá residir em Jacó!
9. Armar a tenda... Essa é a mesmíssima expressão de que se utiliza João para referir-se ao Verbo encarnado: ele armou a sua tenda entre nós... Se, a essa altura, você julgar que se trata de coincidência, nem continue a ler...
10. Os judeus pré-cristãos conheciam, de longa data, um Verbo que armara a sua tenda em Jacó - tratava-se da Sabedoria-Palavra, que saíra da boca do Altíssimo e que, por ordem dele, viera fazer morada em Jerusalém. Sua identidade, nesses termos, permanece teológica - e vaga! Mas Baruque há de tornar as coisas mais claras: para o judeu vinculado à Torá, a Sabedoria é a Palavra criadora que, depois de ter criado tudo, veio morar entre os homens (Bar 3,18). E, textualmente, sua identidade é revelada: "ela é o livro dos preceitos de Deus: a Lei, que subsiste para sempre" (Bar 4,1).
11. Para mim, fecha-se o círculo. Os judeus pré-cristãos conhecem uma Sabedoria, que é Palavra, logo, Verbo, porque saiu da boca do Altíssimo, que é criadora e co-criadora com o Criador, que fez os céus e a terra e que, depois disso, habitou entre os homens, armou a sua tenda e oficiou entre os judeus: ela é a Torá. O mesmo Pentateuco que você tem na sua Bíblia...
12. Ora, nada mais simples, lógico e inevitável do que a seguinte conclusão: João, a comunidade por trás do Evangelho, judia ela inteira, conhecendo essa tradição, essas Escrituras, conhecendo já um Verbo que armou a tenda, uma Sabedoria-Palavra criadora, simplesmente toma-a dos judeus e a aplica ao Jesus que ela segue, tornando-o "celeste". Doravante, e para essa comunidade, o Verbo encarnado não é mais a Torá, mas Jesus - para os que o receberam como tal...
13. Não sei como não se viu isso antes - tantos livros li, nunca achei isso. Não duvido que na literatura internacional mais séria essa história já tenha sido identificada e contada - algum alemão ou judeu já há de ter posto os olhos nisso, antes desse mesquitense do terceiro mundo... Por essas paragens, desconheço. Se encontrarem alguma coisa, me avisem - não valem meus artigos.
14. E, para terminar, eu diria mais: diria que essa criativa apropriação que a comunidade fez deveu-se a uma crítica de uma outra comunidade - a do batista, que, segundo concebo, criticavam o messias cristão como falso ou inferior a João, o batista, uma vez que João, o batista, era mais velho do que Jesus, tendo-o batizado, inclusive. Se mais velho, maior.
15. Não, não é - de novo - coincidência que esses dois temas encontrem-se no prólogo e em Jo 1. Este é aquele de quem eu tenho dito: é aquele que vem depois de mim, mas é maior do que eu, porque exitia antes de mim. Essa fala do batista, a meu ver, jamais por ele pronunciada, é posta em sua boca pela comunidade joanina - por duas vezes!, para aumentar, retoricamente, a força da resposta: é mais velho, porque é celeste! Para calar os batistas, roubam dos judeus (uma pincelada do que será a longa noite cristã...).
16. Criatividade mil! Batalha retórica mil! E duvido que sabiam que escreveriam dois mil anos de história...
OSVALDO LUIZ RIBEIRO
Nenhum comentário:
Postar um comentário