1. Há milhares de anos, dezenas de milhares deles, algumas centenas, provavelmente, o que hoje somos a "humanidade", descobrimos/inventamos a linguagem. Foi "um dia" memorável - o mais extraordinário dos quantos viriam depois. E nunca mais seriam os mesmos, os nossos dias...
2. A linguagem é magia pura. Ela torna presente o que não está presente. "Mamute", diz o homem antigo, e todos, ao redor, já sabem do que se trata. Antes disso, só apontando. Todavia, para apontar, é preciso que o mamute esteja presente, ele ali, nós aqui, e, dedo esticado, apontamos.
3. A linguagem inventa de trazer para cá um mamute que cá não está. Não estava - agora está! Magia... Se não está de todo claro, não me refiro necessariamente e já e só à linguagem "falada" - falo da linguagem de modo amplo: desenho, mímica, e, claro, a fala/escrita.
4. A linguagem é tão mágica, tão "criativa", que mitos da criação tratam as coisas pelos nomes. O mais importante mito babilônico da criação, e um dos mais famosos do mundo, começa dizendo" quando no alto não havia nome algum... Nome. Quando as coisas passam a ter nomes, que damos para elas, é mais do que serem criadas - é serem tornadas presentes, onde quer que sejam pronunciados os seus nomes: a linguagem é evocação...
5. Evocação do que existe e não está presente - "mamute". Mas, e eis a magia ampliada, evocação de coisas que nem estão presentes nem ausentes, porque, simplesmente, são imaginadas. Não há unicórnios, mas inventamos unicórnios, e eles passam a viver... A linguagem dá-nos o poder de criar mundos, seres, coisas.
6. Na linguagem nasce a religião. Não há religião que não vá buscar seu elixir mágico num mundo imaginado - tomado como real, é claro, mas, fenomenologicamente, imaginado. Deuses, diabos, anjos, céus, infernos, juízos, monstros, almas - quanta imaginação...
7. E, todavia, a religião toma tudo isso como real e, em casos não muito raros, pelo contrário, dá a essas coisas imaginadas um estatuto mais concreto, mais real, do que as coisas que realmente estão aqui, disponíveis aos nossos sentidos.
8. Religiões inteiras, e filosofias tidas como avançadíssimas (Platão!) chegam a inverter os polos - em cima estava o imaginado, e, embaixo, o real: mas eles invertem os polos, e o real se torna falso, ilusão, e o imaginado, real, verdadeiro... Deus, e acreditamos nisso!
9. Haverá jeito de alguma religião fazer-se de terra e água? Ou todas elas, quaisquer que forem, terão de viver da imaginação e da vontade de abandonar o mundo que marca os crentes? Como querem crer! Como precisam crer! Como creem!
10. E, todavia, tudo não passa, nos termos humanos, de linguagem - dentro da qual vivemos, da qual vivemos, fugindo de nós mesmos, da terra, da água, do chão...
11. Fugir da realidade e enfiar-se debaixo da saia das ilusões - a isso se tem chamado espiritualidade...
OSVALDO LUIZ RIBEIRO
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