terça-feira, 20 de setembro de 2011

(2011/494) Sobre (um certo) (os riscos de) "ressignificar"


1. Quando o papel, a celulose, o objeto "sagrado" de tinta e tempo se torna um referencial político, acho que a coisa toda se tornou um grande jogo de malabarismo, um pandemônio incontrolável, uma "guerra" sem regras, com cada qual a dizer, do mesmo, o novo que lhe apraz... Sinto-me aborrecido, enfadado, desanimado, nesse cenário: não sou um homem para esses dias...

2. Falo do conceito de "ressignificação". Tudo bem, você quer tomar um termo xis de João, que dizia com esse xis uma certa coisa ypsilom, e você quer fazer esse xis, agora, dizer uma coisa - nova - dáblio. X era Y, agora, o mesmo X é W: a isso se chama "ressignificar". Você quer ressignificar? Que seja... Cada um faz o que quer e pode.

3. Então, você continua a usar o xis, que foi usado há dois mil anos - usa a mesma palavra que está na Bíblia. Todavia, lá, aquela palavra queria dizer uma coisa, e, agora, você faz com que ela diga outra. Raios! Se você está, de fato, dizendo outra coisa, porque tem que usar aquela palavra antiga xis? Por que tem que dizer que está se referindo à Bíblia, quando, de fato, rasgou o sentido com que ela ali e então se expressou - e isso contra ela mesma?

4. Ora, se eu quero dizer uma coisa nova, que eu diga, mesmo contra a coisa velha: e, cá entre nós, há poucos valores novos, "modernos", ocidentais em sua plenitude de sentido positivo e ético, que estejam na Bíblia, que, para todos os fins, é um livro com problemas éticos gravíssimos, e isso não está diretamente relacionado ao "povo" que a escreveu, mas ao conteúdo que o rege - um monoteísmo exclusivista e bélico, cujo capitão e coveiro é, sempre, a morte, em nome do amor...

5. Raios - por que eu preciso dizer coisas novas usando as palavras velhas desse livro, quando as palavras precisam ser novas, porque o sentido velho não serve mais, foi denunciado, até, como anti-ético? Porque quero fazer de conta que estou dizendo o que o velho livro diz? Porque quero dar a entender que ainda "prego" o velho livro?

6. Não, não nado nesse mar, não bebo dessa água. Amo, sim, esse velho livro, mas amo-o tal qual ele é/foi. As suas coisas boas, éticas (sempre segundo os olhos ocidentais modernos), amo-as tais quais foram ditas, sem "ressignificá-las", sem mentir sobre elas, sem fazer a terceiros crer que elas diziam uma coisa, quando diziam outra (claro, para quem as "ressignifique", essa ressignificação não soará, nesse jogo, "mentira": mas "ressignificação" é uma técnica inclusive militar para fazer com que soldados façam coisas - concretas - chamando-as por outro nome, porque, se chamassem pelo nome que de fato cabe à coisa que fazem, talvez lhes faltassem escrúpulos: aí, assassinato pode ser ressignificado por "libertação"!).

7. As coisas más - e há mais coisas más na Bíblia do que boas - trato-as como eram e são, sem disfarçá-las, sem adoçá-las, sem mentir, sem fazer de conta, sem dourar a pílula. Denunciar a violência intrínseca da Bíblia, de sua potencialidade de morte, mantendo vivo seu significado de morte original...

8. Não, não me peçam para ressignificar coisa alguma. As novas coisas que dissermos serão ou iguais ou diferentes às coisas velhas. Quando iguais, iguais, quando diferentes, diferentes. Por favor: nada de fazer - tentar fazer - crer que as coisas novas são potencialidades das velhas. Lidemos com as intenções, não com os fantasmas rotos que flutuam sobre polissemias alegóricas disfarçadas por novos termos de aparência moderna...




OSVALDO LUIZ RIBEIRO

5 comentários:

Robson Guerra disse...

Oi, Osvaldo

Há muito penso que se o sentido original dos textos bíblicos não serve mais, daí a necessidade da sua "contextualização" - que não passa, justamente, de um processo de total descontextualização dos textos - se não teriam mais uma mensagem que falasse aos corações de hoje, por que, raios, então, ainda se usa tal livro? Se não podemos mais tirar lições de seu sentido original, pra que serviria, então?

Aí, lembro-me do disse o personagem de Gary Oldman no filme O Livro de Eli: "Não é um livro qualquer, é uma arma! Uma arma apontada para os corações dos fracos e desesperados!". Enfim, deseja-se novos sentidos, mas não abrem mão do poder do velho livro. Há um terrível jogo de poder por trás das ressignificações, produções de sentido. Querem falar aos corações, mas sem deixar de lhes apontar a "espada de dois gumes".

A Bíblia não merece isso. Nós não merecemos.

Um abraço.

Robson Guerra

Liana disse...

Professor, hoje, que valor então, a bíblia teria? O que dela poderia ser pregado? Por que encontro vida nesse livro de morte?

Peroratio disse...

Valor? O próprio. É um livro fundamental. Com ele, sobre ele, construiu-se o Ocidente. Para o bem e para o mal, é o livro mais importante do Ocidente... Refito-me a compreendê-lo tal qual ele foi: ressignificação não é compreensão. E, sim, ele é um livro de morte, mas de vida, também, como tudo que é humano.

Liana disse...

Tudo o que é humano. Verdade.
:)

Prisca disse...

"Fessorrrr"
(c/ R retroflexo "mêmo" bem caipira:)

Primeiro quero dizer que estou contente de poder ler suas reflexões! Elas são de enorme valia =) A expressão dos pensamentos, e dos sentimentos também, é libertadora.

E aproveitando esta palavra, vou utilizá-la.
Acho que é a LIBERDADE que está em voga nessa sua prosa com nós- meros leitores de seu blog.

A liberdade tanto para a Bíblia afirmar e falar o que "ela quer falar", se é que isso é possível, quanto a liberdade de interpretar este mesmo livro sem que recorrer à tradição, é o que encontra-se em contradição.

Acho também que em nome da VERDADE tira-se a liberdade.
1) Em nome da 'verdade bíblica' a Bíblia restringe-se a algumas interpretações que são produtos da "evolução" do pensamento, das doutrinas, durante a História.
2) E em nome de um verdadeiro sentido do texto (contexto e busca do que o autor quis dizer), a liberdade de sentir o texto a sua própria maneira e ter novas experiências com o texto e com o sagrado (se a fé estiver em serviço) é ignorada.
3) Isso se dá devido a venda dos olhos que todos nós mortais possuímos em relação ao sagrado, não se pode nunca ter certeza.

No quarto evangelho está escrito: "Conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará".


Mas como é difícil ser livre sem se machucar e saber usar a liberdade sem se perder, né?

Saudades!

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