1. A vida, de cabo a rabo, é isso: sair de um útero, e deitar-se noutro, nascer e morrer. O que cabe entre esses dois pontos inescapáveis não tem nem enredo nem script - é sumamente aberto, escancaradamente aberto. Não, não há absolutamente nada que esteja previamente determinado aí. Ah, as necessidades fisiológicas... OK. Quanto a isso, talvez façam parte do nascer e manter-se vivo, do co-nascer, porque comemos para evitar que desintegremos, porque nos vamos Despedaçando aos nanopedaços a cada segundo: enquanto digito essa palavra, milhões de células minhas morreram, e milhões de outras foram postas no lugar, mercê do pão que comi de manhã, que o do café da tarde ainda está a virar células, lentamente, nos intestinos... eu, agora, um outro eu, de certa forma...
2. Não, não há script. No fundo, a vida é cada vez mais um RPG - e ainda mais, porque os RPG ainda estão presos a formas. A vida, bem, é verdade, tem a cultura, e a cultura é uma forma. Mas, cá entre nós, amigos - andem pelas ruas do Rio em 1910, depois, em 1930, depois, em 1950, depois, em 1970, depois, em 1990, depois, em 2010, e vai, me diga: que forma, não? Que nada: são formas na aparência, na pressão do urgente, do aqui e aparentemente agora - mas, no longo prazo, em se considerando quão longo pode ser o prazo de uma geração, puf!, a pressão derrete, desidrata, desaba, e os punks enchem a rua, a mini-saia revela/não-revela/revela curvas impudicas, e os meninos voltam aos tempos das cabeleiras e dos brincos...
3. Não, não há script - e cada vez menos. Houve uma época em que, se seu pai era ferreiro - um Smith -, você seria ferreiro, e seu filho, e o filho de seu filho. Ali se pensou que a vida tinha script. Tinha nada. Alguém se encostara numa rede e lá deitara - sair pra quê? Mas um belo dia, a rede pui, o fundo fura, e você cai. A vida segue em frente, como um rio, procurando sempre o terreno mais baixo, indo, sempre, para seu útero de águas - e nós, para o nosso.
4. E a gente inventa a vida. Cada dia que passa, aumento um grau na minha percepção de que a vida não passa de um jogo, um jogo humano, de sentido, de valores, de comportamentos. Não digo a vida que se estuda nos tubos de ensaio, nos livros de Darwin. Digo a vida que se estudaria nos tratados de Antropologia. A vida, esse mundo humano, de deuses e diabos, de fantasmas e aparições, ah, meus amigos, isso tudo é uma invenção nossa - real, existe, verdadeira, mas nós inventamos. Tudo: sentido, valor, gosto, norma - tudo.
5. Cada um de nós tem o pé firme num ponto, numa noção concreta, a que se aferra e, a partir daí, tudo o mais é inventado: todos os sentidos são construídos por força dessa posição concreta: de pai, de mãe, de filho, de amante, de profissional, de gangster, de santo, de papel, de personagem... Parece-nos tão real! E é - mas, ao mesmo tempo, sem qualquer substância: é tudo coisa de nossa cabeça, coisas que engendramos nas tintas das retinas para fazer de conta que a vida é séria, que as coisas são pretas e brancas, que é assim e não assado, que temos de fazer isso, não podemos fazer aquilo, e vamos acreditando nisso, desesperando disso, contando os dias que nos esperam naquele útero de terra...
6. Ah, a religião, ele me diz... os deuses, ela me argumenta... Sim, a religião e os deuses: também eles nós os criamos, por meio de um processo alguma coisa entre fortuito e natural, aprendemos que são facilitadores da tragédia de viver, são "úteis", principalmente às mentalidades pré-iluministas, e, então, depois que contratados foram pelos reis, pronto, dominaram-nos, eles, nossas criaturas, dominando-nos, o preço que cobram, também na demagogia real, para nos protegerem... Não, meus amigos, não me venham com a velha história de que o "segredo" do sentido da vida são as religiões - também elas, vai, são como nossa urina e suor...
7. Não, não há nada mais sério nem menos sério. Mesmo as responsabilidades: elas são coisas com que nos comprometemos no jogo que decidimos jogar - mas mesmo elas são construções nossas, a que nos prendemos. Como num jogo de que já nos enfastiamos, quantas responsabilidades transformam-se em fardos! Aqui e ali. Mulher! Marido! Filhos! Família! Emprego! Que saco! Se não estão nossos pés firmados aí, que saco! E, por falta de coragem ou algo mais forte, carregamos vida a fora um saco de mil quilos, com o que cobriremos a mortalha naquele dia, por isso de luto, por isso negro, por isso terrível.
8. Que diferença há entre trabalhar, jogar, flertar? Cantar, capinar, viajar? Assistir a um filme ou conversar na esquina? Não, nada que nos disserem como sólido é de fato sólido: sólido, apenas o real, a matéria, a despeito das considerações quânticas - acreditem-me, ele é sólido o bastante para arrebentar com seu crânio! O resto, fluido, etéreo, gasoso - mas tão profundo quanto nossa carne, porque feito dela, da nossa carne e sangue, da nossa vida, ela, a nossa vida...
OSVALDO LUIZ RIBEIRO
Nenhum comentário:
Postar um comentário