terça-feira, 14 de junho de 2011

(2011/353) Do Deus "fora 'de' controle", do Antigo Testamento, ao Deus "fora 'do' controle", de Gondin



1. Isaías 45,7 não me parece uma polêmica anti-politeísta. Me parece uma polêmica no âmbito da Teodicéia, isto é, no campo da doutrina da "justiça de Deus". A rigor, muito mais do tema da "soberania" de Deus.

2. Não me parece que Yahweh esteja dizendo que ele seja o único Deus, quero dizer, que essa seja a questão. O que ele diz - me parece - é que é ele quem faz tanto a luz quanto a treva, que cria a "paz", isto é, o bem-estar, a boa vida, mas faz, também, a desgraça, a tragédia, o mau. Ele, Yahweh, é quem faz isso tudo, tanto o que é bom quanto o que é mau, ele, Yahweh, e não outro. Só ele. Ele - só. Sozinho.

3. Nesses termos, não se trata de discutir se existe outro Deus ou não. Trata-se de discutir quem é, de fato, que faz paz e desgraça, "o que é bom" e "o que é mau", "bem" e "mal". "Sou eu!", diz um Yahweh cioso de sua soberania absoluta, indiscutível: "Sou eu que faço isso, eu, e nenhum outro, eu, e mais ninguém".

4. Em outras palavras: não há nenhum outro que faça a desgraça, nenhum outro Deus que se pudesse culpar por isso: sou eu, e mais ninguém, a fazer "o que é mau" - ao mesmo tempo em que faz, também, "o que é bom". Yahweh desconhece deuses e diabos que possam responder pelo mau - é ele, só ele, e ponto. "Yahweh deu, Yahweh tomou"...

5. Quer-me parecer que uma polêmica dessa tem contexto. É como Paulo, em igual estado de cólera doutrinária, a esgoelar-se, na tentativa de fazer crer a incrédulos coríntios que há isso, sim, de ressurreição. Em Is 45,7, por sua vez, Yahweh esgoela-se a afirmar e a confirmar que é ele, Yahweh, quem faz "o que é mau" - e não um outro qualquer. "Eu!" - ele grita -, "só eu!"...

6. Se é assim, se ele precisa esgoelar-se, ratificar que é ele que faz "o que é mau", deve estar sendo vítima de contestação dessa sua soberania. Deve haver, no horizonte histórico, alguém a pretender negar que seja ele o responsável pelo que é mau, alguém que esteja dizendo que não é possível que Yahweh faça o que é mau, já que não se discutirá que ele faça o que é bom...

7. De fato. Depois do século VI a.C., os judeus impedirão Yahweh de fazer o mal. Yahweh vai se tornar um Deus bonzinho, que só faz o bem. De Força, vai se converter em Amor. Os judeus vão criar uma figura que se tornará responsável pelo mau. Primeiro, Senjaza (Enoque), e, no NT, "Satanás". Yahweh perderá a soberania. É o superanjo "Satanás" o responsável pelo mal. Não adiantou Yahweh se esgoelar. Perdeu. "Minha glória não darei a outro", ele disse - mas deu. Ou pior: teve de dar...

8. A saída "judaica", todavia, não vai ser conveniente. Nem a tentativa, mais tarde, de um Agostinho de driblar o problema: o mal é a ausência do bem... Na prática, não "colou". E a questão é: se Deus não é responsável pelo mal, mas Satanás, significa que Satanás é um outro Deus? "Não!", gritarão os cristãos, "é só um pobre diabo que acha que é alguma coisa"... Mas, retrucam os "espíritos-de-porco", se é assim, então porque ele faz o que é mau, se Deus quer o que é bom para os homens? Porque Deus "deixa" ele fazer o mal, eis a resposta que (nos) dão...

9. Inventou-se essa teologia muito da meia boca para se tentar dar uma arrumada na casa, que, convenhamos, ficou uma bagunça: a casa é de Deus, se diz, mas o diabo pinta e borda. Com efeito, "o mundo jaz no maligno"... Então é-se obrigado a dizer que é assim, porque Deus deixa. Quer dizer, então, que Deus não faz o padrasto estuprar a filha de sete meses - ele apenas deixa...? Vontade permissiva, ensinam os teólogos. Deus mesmo não mata de fome os africanos e asiáticos - e brasileiros, alguns! -: ele apenas os deixa morrer de fome... Não é que não possa fazer nada a respeito: até podia fazer!, é poderoso!, mas não faz. E, todavia, "quem pode fazer o bem, e não faz, comete pecado", ensinamos em outras aulas, mas não nessa, em que parece valer a máxima do faça o que eu digo, mas não o que eu faço...

10. Entretanto, no fundo, lá, onde se definem as coisas importantes, não é o "bem" que determina o grau de soberania da divindade. Sendo bom e fazendo apenas "o que é bom", nem de longe Deus se apresenta como soberano. Porque Deus fora domesticado, domado, amansado, a Teologia medieval teve de recorrer à Justiça - e isso para "explicar" tanta coisa que não cabe no colo do Amor! E isso, porque a soberania decide-se no campo "do que é mau", da desgraça. Yahweh, o antigo, era soberano. Pintava e bordava, matava e vivificava, construía e destruía, criava e descriava - e, depois, dormia, descansava, sem dor de consciência. Depois, perdeu metade - e a metade mais relevante, a única realmente significativa - do "poder", da soberania: ter poder para fazer e fazer o mau. Isso, ele não tem mais.

11. Yahweh foi domesticado.

12. Era um leão - virou um gatinho... E a vida não se explica mais, senão pela tese bastante constrangedora (cínica?) de uma vontade permissiva, desculpada pela racionalização do "mistério"... Aqui reside a dificuldade: Yahweh ainda é aquele leão de sempre, mas deixa matarem suas crias, ou é, afinal, um leão agora velho e sem dentes, desses de circo que fecha e acaba, e não pode fazer nada contra quem mata seus filhotes?

13. Diante desse quadro dantesco de um Deus que não faz "o que é mau" (ele é bom!), mas deixa fazer, de um Deus que não mata, ele mesmo, mas deixa matar, que não estrupra, ele mesmo, mas deixa estuprar, que não mente, ele mesmo, mas deixa mentir, Gondin se revolta: Deus não está - não pode estar - no controle.

14. Pediu-se a cabeça de Gondin. O que prova o grau de desteologização do povo dito crente (mas crente em quê?). Gondin tenta salvar Deus, e o castigam. Sim, "salvar" Deus. Sim, ao risco de fazer de Deus um Deus que nem de longe é todo-poderoso, essa invenção teológica. Gondin arranca os dentes do leão! Todavia, se Deus não é todo-poderoso, será que ele é o Deus que pensávamos que era? Para "salvar" Deus e as aparências, a saída, a única!, de Gondin é assumir que Deus não está, mesmo, no controle, porque, ao contrário do que o próprio Yahweh - (...) - dissera, não é Yahweh, nem Deus, quem faz "o mal"/"o que é mau" - e, nos termos de Gondin, nem é ele quem deixa fazer: faz-se o mal porque Yahweh não pode fazer nada a respeito...

15. A diferença entre Gondin e os teólogos não-Gondin: para estes, Deus não faz, mas deixa fazer, porque pode fazer, mas não faz, nem faz nem impede que faça... Para Gondin, Deus não faz o mal, mas o mal acontece porque ele não pode fazer nada a respeito. Num caso, pode, mas não impede, porque deixa - é cínico. No outro, nada pode fazer - é fraco. É fraco, mas não é cínico. Salva-se o caráter de Yahweh, já que se perdeu sua soberania. Antes um Deus sem poder do que sem caráter... Acho que isso resume bem a posição de Gondin (não?) e a sua diferença em relação a seus "pares"...

16. Agora, para Deus ser soberano, sem ser cínico, tem de se necessariamente mau. Tem de ser selvagem, como o era o Deus do antigo Israel, tão diferente do Deus de Jesus que Marcião o desprezou, enquanto os demais teólogos, todos, banharam-no em mel e açúcar mascavo, para atrair melhor as moscas. A diferença entre eles e Gondin é que Gondin quer salvar Deus de um cinismo divino: antes um Deus fraco, do que um Deus cínico. Antes uma Teologia fraca, do que uma Teologia hipócrita.

17. Mas, cá entre nós, ao fim e ao cabo, o Deus que "sobra" não tem nada mais a ver com Yahweh: o primeiro, ruge, o último, tosse; o primeiro, é o herói que invade a prisão e liberta os cativos, o segundo, Ísis, a chorar na praia a morte dos afogados... Ou Raquel, se preferem uma referência mais doméstica... O Deus que Gondin quer é aquele Deus domesticado pelos judeus pós-exílicos, que, depois de uma longa conversa com os Persas, re-imaginaram o perfil moral de Yahweh, fazendo dele um eunuco nos céus - um Deus a quem cabe apenas as bondades, e sobre quem não pode cair, portanto, a responsabilidade pelo mal.

18. De fato - acabou, aí, a monarquia! E não apenas no palácio e na corte de Davi. Os céus perderam um rei. E nós, quem cuide de nós...

19. Mas me parece que as escolhas não são fáceis: a) um Deus selvagem, que escoiceia quem lhe der na telha, b) um Deus forte, mas cínico, que deixa matarem seus filhos, estruparem suas filhas, violentarem suas criaturas, c) um Deus fraco, que ama desesperadamente, como os pais dos torturados, chorando com eles, mas que pode, apenas, amar... Vai escolher qual?

20. Ah, ouvi alguém dizer assim - fico na poesia... Sem comentários. E, nos comentários, alguém grita: meta-história!



OSVALDO LUIZ RIBEIRO

7 comentários:

Jones F. Mendonça disse...

Um dia fui ingênuo o suficiente para concebe um Deus que é onisciente, mas que ao mesmo tempo permite que os homens sejam livres.

Conheci Gondim. Gostei. Mas com o tempo percebi no fundo no fundo o que ele queria era tirar de Deus a responsabilidade pelo mal (uma espécie de Agostinho mais honesto).

Depois li "O Anticristo" de Nietzsche. Uma análise cirúrgica. Perturbadora.

Hoje fico com a letra a). Deus é uma força caótica, um ímpeto cego. Somos como folha agitadas pelo vento. O que nos resta é dançar no meio dessa terrificante tempestade.

Peroratio disse...

No fundo, meu amigo, essa é a herança maldita protestante.

Ronaldo disse...

Amigo, leia "Meta História" de Rubem Amorese e saia dessa crise!

Peroratio disse...

Crise, quem falou em crise? Não há prestidigitação meta-histórica que fará a desgraça transformar-se em graça. Operações mentais não alteram as operações concretas - apenas adormecem a consciência. O que, concordemos, é muito necessários, seja às vezes, seja para alguns.

Jeyson Rodrigues disse...

Me converti ao Deus contraditoriamente fraco e ainda sim, cínico; e ao Deus forte e ainda sim, bom. Por isso, às vezes, espero que ele seja forte. Peço e clamo pela força que sei que ele não pode ter, porque se tivesse, não haveria lógica em qualquer relação afetiva minha para com ele. Às vezes preciso irracionalizar e pedir. Às vezes preciso, talvez mais coerentemente, me contentar com sua bondade e não-pedir. E como sou assim, contraditório (e não me importo tanto com isso), não me importo que o Deus que eu criei à minha imagem e semelhança seja o tipo ideal da perfeita contradição da qual eu sou apenas um reflexo distorcido (rsrs). Assim, penso que o meu seja o pior de todos e o melhor de todos os deuses, pois tem todos os defeitos e todas as virtudes. Uma vez, meus alunos de teologia me perguntaram (antes de eu ser expulso do seminário - rsrs) em que, afinal, eu acreditava. Respondi que depende do momento que eu tô vivendo. Às vezes preciso do Deus bom-mas-fraco. Às vezes, do forte-mas-cínico. Tornei-lhe "meu Deus". Ainda mais fraco que o Deus meramente fraco-bom, pois quando eu preciso, ele se torna, para satisfazer minhas necessidades psicológicas e caprichos, forte-cínico. Eis aí meu Deus (ou deus): contraditório, ininteligível, caótico, indecifrável, indefinível, forte, fraco, bom, sincero, cínico, amigo, inimigo e estranho. Amo-o, contraditoriamente.

Peroratio disse...

Jeyson, belíssimo.

Jeyson Rodrigues disse...

A minha crítica ao seu texto, prefiro fazer, separadamente: simplesmente fantástico! Parabéns, meu corajoso companheiro de perplexidades e inquietudes.

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