terça-feira, 19 de julho de 2011

(2011/435) "Aurora", Livro Primeiro, aforismo 3: "Tudo cumpre o seu tempo", de Nietzsche - sim e não, meu caro, sim e não


1. Assim reza o aforismo: "Tudo cumpre o seu tempo - Quando o homem atribui um zero a todas as coisas, ele não viu nisso um jogo, mas acreditou ter adquirido uma intuição profunda: - Só muito tarde reconheceu, e talvez nem mesmo tenha ainda reconhecido, toda a amplitude monstruosa deste erro - Da mesma maneira o homem relacionou tudo o que existe com a moral e revestiu o mundo de uma significação ética. Um dia, isso não terá nem mais nem menos valor do que possui hoje a crença na virilidade ou feminilidade do sol" (Nietzsche, Aurora, Livro 1, aforismo 3).

2. Dar ao Sol um conceito viril ou feminino - antropomorfismo: aplicar a coisas inanimadas as qualidades da alma humana, nesse caso, do gênero humano. Correto: o sol não é nem viril nem feminino, nem o será um dia, conquanto nós, em nossa plástica figurativa, possamos tratar dele nesses termos, a intimidade quente de uma fêmea, a ira agônica de um soldado...

3. Nietzsche quer que a aplicação da moral ao "mundo" seja tratada no mesmo diapasão. Sim e não. Sim: se com "mundo", está falando de "natureza" (Tabela Periódica em história e cenário), sim. A matéria não é moral, nem imoral, é amoral. Perfeito: não se pode fazer pousar a moral aí, e, no caso de se realizar tal proeza, é no nível da figuração, da arte, da retórica, da política, do lúdico, da poesia - mas, no nível do real, não.

4. Todavia... "Mundo", se é aquilo que os homens constroem enquanto homens, bem, meu caríssimo filósofo, nesse caso, estás de todo equivocado - inteiramente. Não só se pode, mas se deve pôr aí a moral e a ética, porque a moral e a ética são criações legítimas desse mundo, como o jogo de xadrez...

5. Fomos nós, os homens, que criamos a moral e a ética - e são, sim, criações nossas, humanas, e só podiam, de modo que equivoca-se terrivelmente (e, agora, sei por que!) meu caríssimo aristocrata ao interditar - ao querer interditar! - a nós, esse direito. Nós, meu caro, nós, a despeito de ti, criamos a moral, e a criamos tanto para nela viver quanto para dela zombar: mas, viver doravante indiferente a ela, veja, meu caro, nem tu, nem tu!

6. Aos leitores eu diria que Losurdo fez passar a alma desse homem num raio x poderoso e desnudou-o inteiramente: onde Nieztsche escarnece da moral, é da Revolução Francesa e seu apelo ao "direito" dos homens que ele zomba, porque odeia o fato de que, agora, ao menos em tese, não há mais nobres e plebe, brâmanes e chandala - somos todos, ao menos em tese, iguais. Para Nieztsche, isso é o fim da Civilização - e talvez ele esteja certo, mas, para todos os fins, o fim da civilização que interessava a ele...



OSVALDO LUIZ RIBEIRO

6 comentários:

Jones F. Mendonça disse...

Osvaldo,

Seu comentário me fez lembrar de uma citação de Nietzsche guardada nos meus arquivos:

"...compreendem que, se Deus está morto, não existe mais moral, nem dever, nem regra de vida; confundem o imoralismo com a imoralidade"[1].

A crítica de Nietzsche não seria exatamente esta: que se admita que a moral é uma invenção do homem e não de origem divina?

[1] NIETZSCHE, Friedrich. Assim falava Zaratustra, prólogo, III apud SUFFRIN, Pierre Héber. “Zaratustra” de Nietzsche. p. 36.

Peroratio disse...

Eu diria que é exatamente isso, meu amigo, exatamente isso. Todavia, o que é bom, agora, frisar: o imoralismo de Nietzsche estava a serviço do necessário endurecimento do coração da aristocracia diante dos apelos de igualdade, liberdade e fraternidade que o povo fazia e fez, principalmente na Revolução Francesa. Nietzsche considerava que homens do povo eram, apenas, "instrumentos", nada mais, e pregava uma higiene social que controlasse a relação perigosa entre o número dos pobres e da nobreza. A moral - a Lei do Amor - era seu maior empecilho, o Cristianismo do Amor, o maior entrave da nobreza, que, aos olhos de Nieztsche, começava a enfraquecer, a se "feminilizar", a se deixar tomar de compaixão. Isso, sempre, segundo Losurdo...

Robson Guerra disse...

Oi, Osvaldo.

Então, o que haveria por trás da crítica de Nietzsche à moral seria um "esperneio" diante da mudança social trazida pela Revolução Francesa? Uma "pirraça" diante dos novos princípios éticos que igualam as pessoas deste "novo mundo"? É isso? Penso que seja...

Um abraço.

Robson Guerra

Peroratio disse...

Robson, mais do que isso. Nietzsche era um aristocrata, escravagista e eugenista irredutível - não se trata de capital, mas de "sangue", raça, da nobreza, da elite. A Revolução Francesa, para ele, e o Cristianismo, eram uma desgraça, porque pregavam a igualdade, e a tese dele é a de que, se só há iguais, não há civilização, porque o gênio nasce da carne e do sangue humanos sacrificados sob a roda a história... Pesado, não? Vale a pena gastar 200 reais e ler Losurdo. Nunca mais lerá Nieztsche da mesma forma.

Robson Guerra disse...

Interesante, li, agora há pouco um post do Numinosum sobre Lutero e a revolta dos camponeses. Há uma citação de Lutero refutando as reinvidicações dos camponeses:

Abraão e os outros patriarcas não tinham escravos? Lede o que São Paulo ensina a respeito dos criados? Portanto o vosso terceiro artigo é inoperante face ao Evangelho. Esse artigo deveria tornar todos os homens iguais... e isso é impossível. Pois um reino terreno não pode sobreviver se nele não houver uma desigualdade de pessoas, de modo que algumas sejam livres e outras presas, algumas soberanas outras súditas. (DURANT, Will. A Reforma, 2002, p. 323).

Interessante, não? Nosso "pai" também não tinha problemas com a escravidão.

Robson Guerra

Peroratio disse...

Nem nossos pais, nem nossos avós...

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